quarta-feira, 6 de agosto de 2014

PNE's e sexualidade II (continuação)

A sexualidade ampla, independentemente de se ter ou não uma deficiência, existe e se manifesta em todo ser humano. O erotismo, o desejo, a construção de gênero, os sentimentos de amor, as relações afetivas e sexuais, são expressões potencialmente existentes em toda pessoa, também naqueles que têm deficiências (DANIELS, 1981; ANDERSON, 2000; MAIA, 2001; BLACKBURN, 2002; KAUFMAN, SILVERBERG, ODETTE, 2003; COUWENHOVEN, 2007; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007).
As expressões da sexualidade são múltiplas e variadas tanto para deficientes como para não-deficientes. Em qualquer caso não é possível determinar se a vida sexual e afetiva será satisfatória ou não e é importante lembrar que em diferentes momentos da vida, dificuldades e facilidades vão ocorrer em maior ou menor grau para todos. Entre as pessoas com deficiências o mesmo acontece e seria injusto generalizar, rotular e estigmatizar quem é a pessoa com deficiência - seus potenciais e seus limites - em função de rótulos, sem considerar o contexto social, econômico, educacional em que o sujeito se desenvolve e sem considerar a diversidade entre as pessoas com deficiências. As pesquisas, portanto, sobre sexualidade e deficiências têm divulgado que não é possível afirmar a priori as dificuldades que elas terão ou não no campo sexual (DANIELS, 1981; WOLF; ZARFAS, 1982; SALIMENE, 1995; PINEL, 1999; BAER, 2003; KAUFMAN, SILVERBERG, ODETTE, 2003; GIAMI, 2004; MAIA, 2006; COUWENHOVEN, 2007; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007). Apesar dessas constatações, o que prevalece nos discursos de leigos, familiares e da comunidade é a generalização de idéias preconceituosas a respeito da sexualidade de pessoas com deficiência como se essa fosse sempre atípica ou infeliz. Essas idéias são baseadas em estereótipos sobre o deficiente mantidos por crenças errôneas que o colocam como alguém incapaz e limitado.

 

Mito 1. Pessoas com deficiência são assexuadas: não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais.

Há uma idéia geral de que pessoas com deficiências são assexuadas e isso está diretamente relacionado com a crença de que essas pessoas são dependentes e infantis e, portanto, não seriam capazes de usufruir uma vida sexual adulta (FRANÇA-RIBEIRO, 2001; DENARI, 2002; KAUFMAN; SILVERBERG; ODETTE, 2003; SHAKESPEARE, 2003; GIAMI, 2004; MAIA, 2006).
O olhar para o deficiente como alguém infantil é muito comum, porque em geral, relacionam-se à dependência aspectos como a imaturidade emocional e a infantilidade (SCHOR, 2005; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007). Para Kaufman, Silverberg e Odette (2003) pode-se ter a idade avançada, aspectos cognitivos íntegros, sentimentos de desejo sexual, mas se for preciso ajuda para se alimentar ou se limpar, essa pessoa é considerado pelos outros como uma criança.
Na verdade, até mesmo na infância, a sexualidade não pode ser negada ou omitida no sentido libidinal porque ela existe desde o nascimento e, portanto, mesmo que se considerasse o deficiente como alguém infantil, ainda assim, ele seria uma pessoa dotada da sexualidade (GHERPELLI, 1995; GLAT; FREITAS, 1996; PAULA; REGEN; LOPES, 2005; MAIA, 2006). Além disso, geralmente, as funções e desejos eróticos estarão potencialmente preservados e não deveriam ser negados quando há algum tipo de limitação ou deficiência. Em nenhuma situação há alguém que não seja sexuado, a dessexualização do indivíduo é social e não fisiológica.
Ao considerar a pessoa com deficiência como alguém não dotado de sexualidade, negligenciam-se os cuidados contra situações de abuso e se omitem a essas pessoas o direito de acesso a orientação/educação sexual. Isso é um grave equivoco que tem elevado os índices de violência, de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis (RUSSELL; HARDIN, 1980; EVANS; McKINLAY, 1989; GLAT; FREITAS, 1996; TANG; LEE, 1999; PAULA; REGEN; LOPES, 2005; MAIA, 2006). Para Kaufman, Silverberg e Odette (2003), as pessoas com deficiências são mais facilmente vitimas de violência sexual do que aqueles que não vivem com deficiências. O poder abusivo de cuidadores, a falta de punição para os agressores e o silêncio nas instituições, são situações que podem agravar e aumentar a ocorrência de estupro ou de outras formas de violência nas instituições.
Não se estimulam os programas de orientação/educação sexual porque se entende que nem seria preciso falar sobre sexo àqueles que são assexuados. Por outro lado, há também uma crença de que se falar sobre sexo pode estimular a prática sexual, aumentariam as chances de ocorrerem relações sexuais e ou gravidezes e isso é temeroso para muitas famílias, cuidadores, etc., principalmente quando há uma deficiência cognitiva associada. Porém, a ignorância sexual acaba sendo um grande obstáculo para que as pessoas com deficiência possam evitar a violência e, portanto, programas de orientação/educação sexual poderiam ajudar essas pessoas a usufruir a sexualidade plena e saudável com responsabilidade (RUSSELL; HARDIN, 1980; EVANS; McKINLAY, 1989; FRANÇA-RIBEIRO, 2001; AMOR PAN, 2003; KAUFMAN, SILVERBERG; ODETTE, 2003; MAIA, 2006; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007).

 

Mito 2. Pessoas com deficiência são hiperssexuadas: seus desejos são incontroláveis e exacerbados. A expressão sexual explícita para quem tem deficiência é uma perversão.

O interesse por sexo é variável entre pessoas com deficiências e entre não-deficientes. No caso dos deficientes o fato das pessoas acreditarem que sua sexualidade é exagerada tem mais a ver com a expressão pública de comportamentos sexuais do que com a freqüência com que eles ocorrem, principalmente entre aqueles com deficiência intelectual. Não há relação entre sexualidade exagerada e as questões orgânicas da deficiência (AMARAL, 1995; FRANCA-RIBEIRO, 2001; DENARI, 2002; AMOR PAN, 2003; KAUFMAN; SILVERBERG; ODETTE, 2003; GIAMI, 2004; MAIA, 2006).
Diante do fato de que recebem poucas informações sobre sexualidade e têm poucas oportunidades de socialização, a expressão considerada inadequada dos desejos sexuais nas pessoas com deficiência, refere-se à manifestação da sexualidade de um modo grosseiro que não correspondente às regras sociais e isso prejudica a imagem que as pessoas têm do deficiente que os colocam como dotados de uma sexualidade atípica. Desse modo o desejo, que é normal em todo ser humano, aparece como diferenciado e exagerado pela sua exteriorização inadequada (ASSUMPÇÃO JUNIOR; SPROVIERI, 1993; MAIA, 2006; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007;).
Além disso, se o sexo funcional e normal está relacionado ao fato de ter um corpo perfeito e for capaz de reproduzir, qualquer outra expressão sexual que não seja sob esses padrões pode tornar a sexualidade desviante, patológica ou desnecessária. O sexo parece que só se torna uma necessidade quando envolve um casal (heterossexual), vinculado ao amor romântico e à procriação (KAUFMAN; SILVERBERG; ODETTE, 2003; SHAKESPEARE, 2003). Se há uma deficiência que impõe dificuldades, porque haveria a necessidade de se buscar e desejar o sexo? Não haveria outras coisas mais importantes para uma pessoa com deficiência fazer ou pensar? Esses questionamentos refletem uma visão preconceituosa e limitada do ser humano com deficiência, como se ele fosse desprovido do direito de usufruir uma vida plena em todos os sentidos
Do mesmo modo, aqueles que têm deficiência e insistem em expressar seus desejos sexuais são tomados como pervertidos ou atípicos. Para Kaufman, Silverberg e Odette (2003) a crença de que essas pessoas não têm sexualidade é tanta que mesmo entre aqueles que consideram existente a sexualidade não incluem as pessoas com deficiência no rol dos que têm vida sexual ativa. Como uma conseqüência disso não se imagina que as pessoas com deficiência são vulneráveis ao contágio de doenças sexualmente transmissíveis ou ao envolvimento em crimes sexuais. Assim, é incomum se imaginar alguém numa cadeia de rodas ou com outras deficiências numa relação sado-masoquista, exercendo relações de poder e violência, abusando de menores, se prostituindo, se travestindo etc.
Ainda nessa reflexão, pode-se dizer que entre os profissionais, professores, familiares e até mesmo na literatura científica não há alusão a deficientes que possam expressar livremente uma condição homossexual. A esse respeito, inclusive, é importante destacar que a heteronormatividade (COSTA, 1998) ocorre também em relação às pessoas com deficiência (KAUFMAN; SILVERBERG; ODETTE, 2003; SHAKESPEARE, 2003; MAIA, 2009a). Não se imagina uma pessoa com deficiência sendo gay ou lésbica como parte de sua identidade pessoal. Quando se considera uma orientação afetiva e sexual homossexual para essas pessoas, em geral há uma referência às brincadeiras e jogos sexuais que são comportamentos comuns entre crianças e jovens, principalmente em instituições, mas isso se refere às manifestações típicas do desenvolvimento e não uma condição homoerótica de fato que pode ou não se manifestar como um desejo libidinal. No entanto, assim como na população em geral, há pessoas com deficiências que se reconhecessem homossexuais e isso precisa ser levado em conta por aqueles que pretendem respeitar a diversidade humana.
Outras questões sobre a variedade do desejo humano são igualmente possibilidades para essas pessoas. Kaufman, Silverberg e Odette (2003) comentam que até mesmo as parafilias, por exemplo, podem existir entre pessoas com deficiências. Ao mesmo tempo em que essas perversões não são imaginadas ao deficiente, ele mesmo pode ser visto como perverso e atípico, apenas por expressar seu desejo sexual. Para aqueles que são considerados fora das possibilidades de sexualidade normal a expressão do desejo e o interesse por sexo pode ser considerado perversão. É o que vemos também entre os idosos, por exemplo, igualmente estigmatizados pela limitação do corpo e dessexualizados pela sociedade.

(continua...)

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