sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A aprendizagem de crianças com deficiências múltiplas

Andréia Pereira Gil, 12 anos, é surdocega. Não ouve e não enxerga quase nada - feixes de luz talvez, e só pelo olho direto. A alegria descoberta no vaivém do balanço é uma das maneiras que ela encontrou, na escola, de tomar contato com o mundo - apenas um dos muitos jeitos de sentir a vida


Por Débora Didonê para o Nova Escola | novaescola.org.br

Andreia Pereira Gil, deficiente mútipla, balançando no pátio da EMEF Doutor João Alves dos Santos. Foto: Kriz Knack 
Andreia Pereira Gil, balançando no pátio da EMEF Doutor João Alves dos Santos.
Foto: Kriz Knack 

Sensações. É por meio delas que as pessoas com deficiência múltipla aprendem sobre as coisas que estão a sua volta. A professora Carolina Bosco, especialista nesses casos, estimula a descoberta da sensibilidade com diversos tipos de toque e movimento, como numa recente cena vista na EMEF Doutor João Alves dos Santos, em Campinas, a 90 quilômetros de São Paulo. Ela dá a mão para Andréia equilibrar-se numa mureta. A menina apóia-se no seu braço para descer e as duas vão de mãos dadas até o pátio. A aluna abraça uma árvore e passa a mão sobre a casca. O contato arranca de Andréia um raro sorriso.

A cena não chamaria tanta atenção se não fosse o jeito diferente de ser da jovem. Ela gira a cabeça, baba e vive com o braço direito levantado. O grande desafio em relação a Andréia é criar um modo de comunicação para que ela reconheça lugares e pessoas. Foi a tarefa assumida por Carolina. A menina também conta com a ajuda de Carmen Sílvia Dias, sua professora da 2ª série, onde tem 30 colegas. Ambas procuram maneiras de explicar por que ela vai à escola e o que todos fazem por lá.

Carolina formou-se em Pedagogia com ênfase em Deficiência Mental na Universidade de São Paulo e é pós-graduada em Arte em Educação Especial pela Universidade de Paris. Ela já havia trabalhado com alunos com deficiência múltipla (associação de duas ou mais deficiências, como mental e física ou auditiva, visual e física), mas Andréia é a primeira que atende em escola regular. Ali, elas cumprem um cronograma, religiosamente, toda segunda, quarta e sexta-feira. É quando Andréia mexe com sucata, aprende a escovar os dentes, caminha pelo pátio da escola, sente a vibração da música colocando as mãos sobre um rádio portátil e brinca no balanço. "É um trabalho de reorganização corporal, percepção tátil e de volume", diz Carolina. Aos poucos, a menina aprende a lidar com o próprio corpo.

Carmen foi a única professora da escola que se dispôs a acolher Andréia. A menina está com ela desde a 1ª série. "No começo, parecia que seria impossível controlá-la. Ela levantava no meio da aula e mexia em tudo", diz. "Não sabia usar o tato para se comunicar e logo se cansava de ficar na carteira apalpando o alfabeto móvel." Por isso, a união do trabalho de Carmen e Carolina fez a diferença. "Uma criança com deficiência precisa de dois professores", afirma Carolina. "O de classe, que atua na área da aprendizagem de maneira geral, e o especializado, que trabalha na dos distúrbios." Por isso, enquanto Carolina desperta o lado comunicativo de Andréia, Carmen cria atividades para integrá-la à turma. Na roda da conversa, onde as crianças desabafam até sobre o desgosto de ser banguelas, Carmen abriu um espaço para elas interagirem com a colega surdocega. Como Andréia está aprendendo a usar o toque para reconhecer as pessoas, cada um pensou num sinal só seu que ela pudesse sentir. Daiane Gomes de Lira, 8 anos, sempre conduz a mão de Andréia para seus cabelos crespos: é a marca que a identifica. A professora Carolina, por sua vez, faz a menina pegar em seu anel.

Também é pelo tato que Andréia começa a entender a rotina da escola. "Para iniciar qualquer atividade, mostra-se o ambiente onde ela está", diz Carolina. Na sala de aula, no começo do dia, fazem-na apalpar a porta, a lousa e o giz. Aos poucos, a menina demonstra mais confiança em quem a toca. "Já permite com mais facilidade que movimentem sua mão direita", conta a professora.
Tempos atrás, ela puxaria o braço em sinal de rejeição. Afinal, habituou-se desde criança a mantê-lo levantado para mexer a mão em frente ao olho direito, talvez para perceber as luzes que a pouca visão permite. "Para ela, é como se fosse uma sensação de prazer", diz Carolina. "Nosso desafio é fazê-la baixar o braço para ela recuperar o equilíbrio do corpo", afirma o professor de Educação Física Renato Horta Nunes, que faz a aluna andar de mãos dadas com os colegas durante as aulas.

Prazer maior que esse Andréia só encontra no balanço da escola. Quando está nele, embalada, chega a gargalhar (mesmo sem nunca ter visto ou ouvido alguém fazer isso). Estica-se e joga-se para a frente e para trás, segurando a corda com firmeza. "É como se ela reordenasse o equilíbrio do corpo", explica Carolina. Um ano atrás, a menina chegava à escola no colo da mãe ou do irmão, ficava descalça e perambulava pelos corredores sem destino. Com a chegada de Carolina, Andréia já usa uma colher para comer, segura o copo ao tomar água, lava as mãos e fica sentada em sua carteira durante as aulas.

A Matemática nas mãos

Toda escola tem obrigação de receber qualquer aluno, mas não basta simplesmente matricular as crianças com deficiência múltipla. "É preciso ter estrutura", diz Carolina. Nessa hora, entram em cena os educadores que dão o melhor de si para atendê-las.
Em Brasília, a professora de Matemática Patrícia Renata Marangon, da 6a série da EE EC-405 Sul, não teve muitas dúvidas sobre o que fazer quando, no ano passado, recebeu em sua classe Paulo Santos Ramos, aluno cego, com apenas 30% da audição num ouvido e pouco movimento nos braços. Nas primeiras aulas, ela percebeu a afinidade do garoto com números e contas e a vontade que tinha de solucionar problemas. Decidiu inscrevê-lo numa olimpíada nacional de Matemática. Paulo, então com 16 anos, conquistou uma das 300 medalhas de ouro concedidas pelo torneio, que teve cerca de 10,5 milhões de participantes.
Sem uma versão da prova em braile, Patrícia adaptou ao material concreto as figuras geométricas que apareciam em algumas questões: "Pensei numa forma de fazer Paulo raciocinar com autonomia, sem a interferência dos professores que fariam a leitura das questões". Deu certo. A compreensão das ilustrações ficou por conta da sensibilidade das mãos do garoto, que apalparam figuras feitas pela professora com palitos de dente, EVA, cartolina e papel cartão.

Paulo foi o primeiro aluno com deficiência que Patrícia recebeu. O único apoio especializado que a escola oferecia na época era o de um professor itinerante que fazia transcrições para o braile. "Foi difícil lidar com a falta de audição", diz Patrícia. Mas ela não se deu por vencida. Sentava perto do aluno, aumentava o tom de voz dentro da sala de aula e falava bem perto do ouvido do menino, o que a deixava exausta. Antes que perdesse a voz, lembrou-se de uma caixa de som e um microfone que a escola usava em eventos e passou a dar suas aulas com o equipamento.

Ele não nasceu cego. Por isso, lembra de imagens e formas. Aos 2 anos, durante as férias que passou com os pais em Cuba, levou um tombo enquanto brincava. Na volta, seu joelho não desinchava. Os pais levaram-no de um médico a outro para entender o porquê do hematoma persistente. "Foi diagnosticada a artrite reumatóide juvenil", lembra a mãe do menino, Maria Lima dos Santos. Uma em cada mil crianças tem essa doença, uma inflamação crônica que afeta as articulações, os olhos e o coração.
Aos 3 anos, o pequeno entrou na escola regular com problemas nos joelhos e nos olhos. "Quando sua letra começou a aumentar, me aconselharam a colocá-lo numa escola especial", diz Maria, que se recusava a ver seu primeiro filho, "tão lindo e perfeito", aprender braile. "Tive aversão ao braile até descobrir como seria necessário", admite ela, que chegou a afastar Paulo dos estudos por causa disso.

Quando Paulo concluiu a escola especial, onde cursou as duas primeiras séries, voltou à escola comum para continuar a Educação Básica. Sugeriram que ele repetisse o ano. "Os professores afirmaram que ele se adaptaria melhor, já que tinha saído de uma turma de quatro alunos e entrado numa de 20", lembra a mãe. Ao chegar à 6ª série, o aluno, defasado, teve a sorte de deparar com a professora Patrícia, que o levou à olimpíada, apesar da descrença de alguns de seus colegas de trabalho. "Ele tem uma força de vontade que nunca vi em crianças sem deficiência", diz ela. A imprensa divulgou o desempenho do menino e seu feito teve repercussão. "Recebeu até convite de universidade para contar sua história", conta a mãe. Aos 17 anos e com cara de 12 anos (parou de crescer por causa dos remédios que tomou), Paulo não tem medo de público. Adora falar. Só uma otite pode impedi-lo, pois ela causa dor e surdez. Mas já está aprendendo libras para atravessar momentos como esse. Quem conta é Maria, que superou seu horror a braile.

"Ele quer se casar e trabalhar", diz ela. O menino que não tomava banho sozinho nem andava com a cadeira de rodas em casa hoje é praticamente atleta. Faz exercícios abdominais e flexões, fisioterapia e natação para recuperar os movimentos das pernas e evitar cirurgia.

Apaixonados pela escola

Enquanto Paulo se exercita, Matheus Gomes de Sousa, 7 anos, faz cada curva com a cadeira de rodas. "A gente pensa que ele vai capotar", conta a mãe, Rita de Abreu de Souza, de Rio Branco. Ele é espoleta e agitado desde a pré-escola, quando plantava pé de cebola na horta, brincava de escalar no morro de terra, rastejava pelo chão imitando cobra e competia em natação.
Ninguém diria. Matheus, que sofre de hidrocefalia, carrega uma válvula implantada no corpo para drenar o excesso de líquido no cérebro. Também tem deficiência mental, paralisia nas pernas e usa fraldas. Está na 1ª série da EEEF José Sales de Araújo e vai muito bem. "Lê tudo sozinho para fazer os deveres de casa", diz Rita.

Matheus não é um medalhista em Matemática, mas a professora Damiana dos Santos Gomes não vê nada de errado nisso. "É uma dificuldade com a qual estou acostumada", diz. O diagnóstico de deficiência mental nunca serviu de barreira para seu bom desempenho na escola. "Ele nem precisa de sala de recursos para desenvolver-se intelectualmente", conta ela.
O garoto depende da ajuda alheia somente para a troca de fraldas. Por causa da paraplegia, não controla a vontade de ir ao banheiro. Sua mãe cobrou esse cuidado da escola. "Falei que Matheus precisaria ser trocado nos horários certos", conta Rita. Nada disso o intimida. Se for preciso, vai à sala de aula aos domingos de tanto que gosta de estudar. Até reclamou da mãe - que é professora - para o pai quando ela cogitou tirá-lo de lá.

Matheus freqüentou a classe especial até os 4 anos, mas foi na regular que fez amigos. "Antes, ele quase não convivia com crianças", diz Rita. Já a garotada sem deficiência instigou-o a explorar o próprio corpo. "O convívio com outros modelos de comportamento estimula o lado sadio da criança", diz a especialista Carolina Bosco.

A aluna Sandy Gracioli Sartori, 5 anos, só começou a engatinhar ao entrar na EEI Fazendo Arte, em Rio Claro, a 180 quilômetros de São Paulo. Ela já venceu muitos obstáculos. Nasceu com pouco mais de 1 quilo, aos seis meses de gestação. Das mãos do obstetra, foi direto para a unidade de terapia intensiva, onde ficou 15 dias. Foi entubada. Passou por uma cirurgia de duas horas e meia. Sofreu parada respiratória e falta de oxigenação no cérebro. Usou bolsa no intestino durante dois anos.

Hoje, sua mãe, a dona-de-casa Silmara Gislaine Sartori, não permite que deixem Sandy o tempo todo na cadeira de rodas na escola. "Ela começou a engatinhar e se mexer na cama elástica porque via as outras crianças brincando", diz. Sandy só fica na cadeira para comer ou ser levada à videoteca. E muitos se animam a ajudar a empurrar a colega. Ela não gosta muito dessa disputa e, quando é contrariada, grita e enruga o rosto como quem vai chorar. "Quando ela bate palma e manda beijo, quer dizer que está gostando do ambiente", conta a professora Camila Ferreira Lopes, que aprendeu a interpretar os gestos da pequena geniosa.

Camila foi bem preparada pelas psicólogas da escola para receber Sandy na turma do maternal. Ela também conversou com a fisioterapeuta, a fonoaudióloga e os pais da menina diversas vezes. Sandy não andava nem falava, só comia alimentos pastosos e tinha o raciocínio um pouco lento. Mesmo com tantos avisos e informações, Camila ficou travada quando se viu diante da aluna. "Eu não sabia como falar com ela, como segurá-la, que tipo de brincadeira fazer", diz. Enquanto isso, a meninada de 3 anos não se deixava abalar. "A relação entre as crianças e Sandy era muito carinhosa. Não sei por que me sentia tão apreensiva."

Atividades e estratégias


Rotina da escola
Estabeleça símbolos na sala de aula para que um aluno surdocego compreenda, aos poucos, sua rotina escolar: ao entrar na sala, ele toca a porta, o quadro e o giz, sempre na mesma ordem e com a ajuda do professor ou de um colega; antes de iniciar uma atividade, ele pode passar as mãos nas folhas de um caderno. O mesmo mecanismo serve para a hora do lanche e de ir embora.

Roda de brincadeira
Observar o comportamento das crianças sem deficiência ajuda aquelas que têm deficiência múltipla a se desenvolver. Por isso, faça jogos e brincadeiras que reúnam a turma no final das aulas. Se o aluno com paraplegia, por exemplo, tem dificuldade para se movimentar, sente-o no chão (se o médico autorizar), em roda com os demais, e proponha uma atividade em que eles usem as mãos e os braços.

Incentivo ao movimento
É possível estimular a criança de pré-escola que não engatinha. Deitada numa cama elástica, ela sente as oscilações causadas pela atividade dos colegas. Vê-los engatinhando e rolando a leva a tentar os mesmos movimentos. Se o médico autorizar, deixe-a o mínimo tempo possível na cadeira de rodas. Ela se sentirá instigada a se mexer ao se sentar com os colegas num tapete ou tatame.

Histórico do aluno
Pesquise tudo sobre a criança: de onde ela vem, como é a família, como se comunica e quais as brincadeiras preferidas. Na avaliação, valorize a evolução do aluno, dentro de seus limites, e não os resultados. Afinal, em certos casos há um grande avanço entre chegar sem falar e depois participar das aulas oralmente.

Quer saber mais?

Contatos
. EMEF Doutor João Alves dos Santos, R. Manoel Tomas, 288, 13067-170, Campinas, SP, tel. (19) 3281-2694
. EE EC-405 Sul, SQS 405, Área Especial, 70239-000, Brasília, DF, tel. (61) 3901-7694
. EEEF José Sales Araújo, Av. Pastor Muniz, Conj. Universitário 2, s/no, 79915-300, Rio Branco, AC, tel. (68) 3229-4141
. EEI Fazendo Arte, Av. 32A, 112, 13506-675, Rio Claro, SP, tel. (19) 3534-7600
Bibliografia
. Deficiência Múltipla e Educação no Brasil, Mônica Kassar, 113 págs., Ed. Autores Associados, tel. (19) 3289-5930, 24 reais
. Inclusão - Um Guia para Educadores, Susan e Willian Stainback, 456 págs., Ed. Artmed, tel. (51) 3027-7000, 64 reais

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