Mitos e Crenças Equivocadas sobre a Sexualidade de Pessoas com Deficiência.
Ana Cláudia Bortolozzi Maia e
Paulo Rennes Marçal
Ribeiro.
Este texto aborda a presença de idéias preconceituosas sobre a sexualidade de pessoas com deficiência discorrendo, de modo critico e reflexivo, sobre diversos mitos, tais como:
- pessoas com deficiência são assexuadas: não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais; - pessoas com deficiência são hiperssexuadas: seus desejos são incontroláveis e exacerbados;
- pessoas com deficiência são pouco atraentes, indesejáveis e incapazes para manter um relacionamento amoroso e sexual;
- pessoas com deficiência não conseguem usufruir o sexo normal e têm disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à excitação e ao orgasmo;
- a reprodução para pessoas com deficiência é sempre problemática porque são pessoas estéreis, geram filhos com deficiência ou não têm condições de cuidar deles.
A crença nesses mitos revela um modo preconceituoso de compreender a sexualidade de pessoas com deficiência como sendo desviante a partir de padrões definidores de normalidade e isso se torna um obstáculo para a vida afetiva e sexual plena daqueles que são estigmatizados pela deficiência. Esclarecer esses mitos é um modo de superar a discriminação social e sexual que prejudica os ideais de uma sociedade inclusiva. Os mitos sobre a sexualidade e deficiência referem-se às idéias, discursos, crenças, inverdades, que são ideológicas e que existem para manter e reproduzir as relações de dominação de uns sobre os outros. Não se trata aqui de mitos antropológicos citados como uma linguagem utilizada por diferentes culturas para explicar os fenômenos da natureza e do mundo (HIGHWATER, 1992; NUNES FILHO, 1994; FURLANI, 2003) e sim de mitos como uma expressão que identifica o conjunto de idéias preconceituosas e limitadas; em geral, crenças reproduzidas sem fundamento, apenas baseadas em preceitos ou pré-conceitos e atribuídas a um grupo específico em determinada condição. Neste caso específico, tratam-se daquelas idéias que são generalizadas ao fenômeno da sexualidade e da deficiência e que traduzem um modo estereotipado de compreender a questão. Furlani (2003, p.18) comenta que há idéias de cunho político e ideológico que podem estar impregnadas nos diversos mitos, conferindo-lhes "potencialidade em reforçar posturas discriminatórias e sentimentos preconceituosos, frente ao seu objeto". Para Silva (2006, p.425), a propensão a generalizar utilizando estereótipos sobre as possíveis problematizações, no caso da sexualidade de deficientes, é uma simplificação que "responde à demanda imediata do pensamento, valendo-se de conteúdos e juízos de valor incorporados, conforme a condição e posição hierárquica social".
Conhecer e esclarecer os mitos e idéias errôneas
sobre sexualidade de pessoas com deficiências é uma tarefa
importante porque essas crenças podem afetar a todos, quando por
meio delas se incentivam as relações de discriminação e de
dominação que podem ocorrer entre não-deficientes sobre os
deficientes, entre homens com deficiência sobre as mulheres com
deficiência, entre pessoas com deficiências menos comprometedoras
sobre as que têm maior comprometimento etc. Anderson (2000), Baer
(2003) e Kaufman, Silverberg e Odette (2003) argumentam que se essas
crenças são assimiladas por pessoas deficientes isso poderá
aumentar seus sentimentos negativos de desvalia e inibir a expressão
de uma sexualidade favorável. Se elas são assimiladas por pessoas
não-deficientes isso pode justificar o modo limitado como se julgam
os deficientes: uma visão da vida sexual e afetiva assexuada, frágil
e desinteressante.
A reprodução dos mitos tem a ver com o medo que
as pessoas têm diante do estigma da deficiência (GOFFMAN, 1982) a
partir de um corpo marcado pela deficiência e fragmentado pela
imperfeição que se desvia tanto dos padrões de normalidade
vigentes e que colocam as pessoas na sua condição de
vulnerabilidade e diante da inevitável fragilidade humana. Muitas
pessoas não deficientes acreditam que nunca serão deficientes e os
deficientes são, portanto, vistos como essencialmente diferentes
deles. Ao distanciar de si mesmos tudo que se relacione com
deficiência explicita-se uma atitude de negação, um mecanismo
subjetivo em relação ao outro porque aquele corpo remete ao medo de
que o corpo normal, que é frágil e vulnerável, se identifique com
o corpo deficiente, e porque essa é uma condição possível para
todos (CROCHIK, 1997; KAUFMAN, SILVERBERG; ODETTE, 2003; SILVA,
2006).
Segundo Silva (2006, p.425), o preconceito
materializa um mecanismo de defesa diante do encontro entre as
pessoas quando um é a ameaça ao outro por ser algo novo, diferente
e temeroso e, segundo a autora, em decorrência disso, temos a
propensão a generalizar utilizando estereótipos sobre as possíveis
problematizações que "são simplificações que respondem à
demanda imediata do pensamento, valendo-se de conteúdos e juízos de
valor incorporados, conforme a condição e posição hierárquica
social". Para Crochik (1997), o indivíduo preconceituoso
fecha-se em suas opiniões, o que o impede de conhecer efetivamente
aquilo que ele teme. Por isso ele afasta o outro de si para preservar
sua estabilidade psíquica porque ao se colocar diante do que teme
como alguém possível de identificação, os sentimentos de
humilhação e fragilidade vêm à tona e, parece mais fácil, manter
atitudes de discriminação e exclusão do outro não-normal ao invés
de reconhecer esse mecanismo emocional que nos reconhece como
semelhantes e humanos. Silva (2006, p.426) comenta que:
O preconceito às pessoas com deficiência
configura-se como um mecanismo de negação social, uma vez que suas
diferenças são ressaltadas como uma falta, carência ou
impossibilidade. (...) A estrutura funcional da sociedade demanda
pessoas fortes, que tenham um corpo 'saudável', que sejam eficientes
para competir no mercado de trabalho. O corpo fora de ordem, a
sensibilidade dos fracos, é um obstáculo à produção. Os
considerados fortes sentem-se ameaçados pela lembrança da
fragilidade, factível, conquanto se é humano.
Em geral, esses mitos descrevem idéias que são
tomadas como gerais a todo deficiente, por exemplo, tornar uma
limitação específica em totalidade, isto é, compreender toda a
pessoa como deficiente e não apenas algo específico ou relacionado
a ela, dispor de explicações lineares e causais, como se tudo o que
ela fizesse ou fosse tivesse a ver com as deficiências e também
pelo temor ao contágio, como se ao conviver com alguém com
deficiência pudesse haver uma contaminação desse infortúnio
(AMARAL, 1995; SILVA, 2006). Vários autores e pesquisadores têm
comentado sobre diferentes mitos e crenças a respeito da
sexualidade, quando se tratam de pessoas com deficiências (AMARAL,
1995; GHERPELLI, 1995; SALIMENE, 1995; GLAT; FREITAS, 1996; PINEL,
1999; ANDERSON, 2000; FRANÇA-RIBEIRO, 2001; DENARI, 2002; AMOR PAN,
2003; BAER, 2003; KAUFMAN; SILVERBERG; ODETTE, 2003; GIAMI, 2004;
MAIA, 2006; COUWENHOVEN, 2007).
Podemos perceber que os mitos abrangem os modelos
normativos relativos à sexualidade (vida social, afetiva e amorosa
que envolve os relacionamentos, a auto-imagem, questões de estética
e atratividade, sedução, questões de gênero) e às práticas
sexuais (desempenho sexual funcional e o sexo considerado saudável).
Em todos os casos, baseiam-se em modelos normativos que são
ideológicos e construídos socialmente e prometem uma felicidade
idealizada e exagerada a todos nós, mas que atinge, diretamente,
àqueles que vivem com uma deficiência visível e por ela são
estigmatizados.
Enfim, as crenças sobre a sexualidade das pessoas
com deficiências em geral, referem-se a um modo generalizado de ver
o outro estigmatizado pela deficiência (VASH, 1988; AMARAL, 1995;
MAIA, 2006; SILVA, 2006). A seguir, comentaremos sobre eles tentando
refletir sobre as razões porque defendemos que tratam de concepções
preconceituosas e limitantes para a expressão plena da sexualidade
humana.
(Continua...)