terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Brasília tem primeiro bloco de carnaval inclusivo para autistas

Bloco de rua foi criado por psicólogos do DF que trabalham com crianças autistas e com comprometimentos no desenvolvimento cognitivo e sensorial. Evento foi aberto ao público.



Jovens com autismo e síndrome de Down distribuíram panfletos sobre o Bloquinho Bom Para Todos nas ruas de Brasília (Foto: Deborah Souza/Divulgação)

Neste carnaval, o Distrito Federal desfilou o primeiro bloquinho de rua especialmente adaptado para jovens com autismo e doenças que afetam o desenvolvimento cognitivo e sensorial, como a síndrome de Down. O Bloquinho Bom Para Todos saiu neste sábado (18) das 14h às 18h no estacionamento do Parque Vivencial, no Lago Norte.

Diante da inexistência de festas que incluíssem este público, os psicólogos Carolina Passos e Paolo Rietveld – especialistas em desenvolvimentos atípicos – decidiram criar um bloquinho com as adaptações necessárias para que estes jovens possam se divertir à vontade.

“O carnaval é uma celebração tão cultural, tão brasileira, mas os meninos ficam de fora por falta de adaptação. Há um histórico de isolamento das pessoas com deficiência”, diz Carolina.

Para transformar a ideia em realidade, a dupla contou com a ajuda das crianças – tanto no planejamento, quanto na execução do projeto. “Construímos isso junto com eles. Pensamos nas adaptações necessárias, o que seria legal, o que eles gostariam de curtir."


O psicólogo Paolo Rietveld instruiu sobre a distribuição de panfletos de divulgação do bloquinho em Brasília (Foto: Deborah Souza/Divulgação)

No sábado passado (11), eles distribuíram panfletos sobre o evento nas ruas da cidade. Segundo Paolo, a ação estimula o desenvolvimento de habilidade sociais. “Tudo isso é muito terapêutico, porque trabalhamos inabilidades e dificuldades que eles têm a partir de atividades que lhes permitem aprimorar este repertório.”


Daniel Bertoni distribui panfletos sobre o Bloquinho Bom Para Todos em Brasília (Foto: Deborah Souza/Divulgação)

Apesar da limitação sonora, o bloquinho é – como diz o nome – para todos. “A ideia é que seja um carnaval inclusivo, que qualquer um participe. Nosso trabalho é fazer a ponte desses jovens com a sociedade”, explica Paolo. Para ele, é essencial que as pessoas tomem consciência de que é preciso se adaptar “um pouquinho” para incluir estes jovens.

“A gente faz muito pros meninos se adaptarem, mas não há um retorno [da sociedade]. Eles fazem muito esforço para estar em ambientes desconfortáveis e a sociedade ainda está muito em falta com isso”, diz Carolina.

Adaptações sonoras

Como eles são muito sensíveis aos sons, o volume foi reduzido, mas não faltou atração musical. A banda Lagartixa Chorosa e outros três cantores se apresentaram em um palco afastado do centro das atividades. A organização recomendou aos foliões que não levassem apitos, balões ou quaisquer instrumentos que pudessem fazer barulhos estridentes.

Ao lado do estacionamento, próximo ao parquinho, foi montado um espaço de “conforto sonoro”, que ficou afastado da banda. Além dos brinquedos tradicionais, houve uma pista de obstáculos feita com elásticos amarrados à estrutura para prender bicicletas.

A decoração brinca com sentidos e foi feita à mão por eles mesmos. “Como o autismo é um transtorno sensorial, alguns sentidos ficam muito aguçados”, explica Paolo. Por isso, foram espalhados o cata-ventos por toda a parte. “Eles ficam fascinados com o movimento das cores.”

No domingo 12, as crianças participaram de uma oficina para criar pêndulos e varais de enfeites com cartolina colorida e aprenderam a fazer pinhata, que foi uma das atrações do bloquinho.

Para quem esqueceu a fantasia ou quis incrementar o visual carnavalesco, os organizadores disponibilizaram uma caixa com adereços. Ao final, houve um desfile de fantasias.

Comidinhas carnavalescas



No food truck 'Kombinha azul', jovens com autismo vendem alimentos sem glúten e sem lactose em Brasília (Foto: Kombinha Azul/Divulgação)

A “Kombinha azul”, um food truck administrado por jovens com autismo, esteve no local. O cardápio é pensado especialmente para o público do bloco. Nada de glúten ou lactose. O truck de sucos naturais Sucupira também esteve no local.

Como todo o atendimento é feito pelos jovens, a experiência permite trabalhar capacidades de relacionamento interpessoal e habilidades acadêmicas, como matemática aplicada na hora de calcular o troco.

De acordo com o idealizador do projeto, Gustavo Tozzi, a "Kombinha azul" permite a vivência de uma experiência de mercado aos alunos que estão na faixa etária de jovens-aprendizes, entre 14 e 19 anos.

Fonte: G1

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Jovem com microcefalia estreia como modelo: 'Céu é o limite', diz mãe

Ana Victória, de 17 anos, é contratada de agência manauara.
História da jovem ficou conhecida após mãe criar grupo de apoio na web.


Ganhar o mundo por meio das passarelas e campanhas publicitárias é o sonho de muitas jovens. Para Ana Victória Lima, de 17 anos, os flashes das lentes fotográficas têm um significado ainda mais encantador: o da superação. Diagnosticada com microcefalia, a adolescente não perde a postura em frente às câmeras e afirma que atuar como modelo é uma realização. "É meu sonho", diz. A história da jovem que mora em Manaus ficou conhecida após a mãe de Ana, Viviane Lima, criar grupo de apoio na web.


Ao G1, Viviane comentou sobre os novos passos da filha e desafios da profissão que escolheu após ser convidada para um projeto de uma agência de modelos em Manaus. A jovem já recebeu várias propostas para trabalho.

Ainda durante a gravidez, Ana Victória foi diagnosticada com microcefalia. A mãe, aos 18 anos, recebeu a notícia com seis meses de gestação.

"Naquela época não se tinha esse entendimento, eu não sabia o que era microcefalia, então eu tinha que esperar para ver o que seria. Quando ela nasceu, o neurologista chegou e disse: ‘ela realmente tem microcefalia, ela não vai andar e não vai falar", contou Viviane.

Dois anos e meio depois, durante nova gravidez, a notícia de que a segunda filha, Maria Luiza, também teria microcefalia abalou a mãe. "Disseram que ela não teria 24 horas de vida, e hoje ela tá aí, com 15 anos", conta. Hoje, ao ser estimulada pela mãe, Ana fala como se sente: "Maravilhosa, linda, perfeita. Graças a Deus. É meu sonho", disse a jovem modelo.

Ana Victória foi destaque após projeto de sessões de fotos em agência de modelo (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)
Ana Victória foi destaque após projeto de sessões de fotos em agência de modelo (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)

Hoje, na adolescência das filhas, Viviane relembra os momentos difíceis e abre os caminhos para uma nova experiência. Ana Victória e Maria Luiza foram chamadas para uma sessão de fotos idealizada para um projeto chamado "Arte sem Preconceitos", de uma agência de modelos em Manaus. O projeto convidou 30 crianças deficientes e teve início há cerca de um mês.

Ana Victória, de 17 anos, é contratada de agência manauara (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)
Ana Victória, de 17 anos, é contratada de agência manauara (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)

"No momento que elas estavam fazendo a foto foi que a dona da agência chegou e disse 'Essa menina precisa estar na passarela'. Só que assim, a Ana Vitória sempre teve esse jeito, essa vontade de desfilar, mas eu nunca pensei nisso profissionalmente, nunca tinha pensado dessa forma", afirmou Viviane.

Mãe diz que não teme comentários preconceituosos e se emociona ao ver filha desfilando (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)
Mãe diz que não teme comentários preconceituosos e se emociona ao ver filha desfilando (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)

O destaque de Ana saiu das ideias para as lentes das câmeras. A agência iniciou um processo de preparo para que a estudante aprendesse a fotografar e desfilar. Segundo a mãe, a mudança no comportamento da filha foi inevitável.

"Quando eu vi a Ana Victória em um salto alto e desfilando desse jeito, eu pensei: o que estava guardado dentro dela era o que estava precisando para ela amadurecer", afirmou Viviane.

Futuro
Ao ser questionada sobre o futuro da filha nas passarelas, Viviane não tem dúvidas: "Eu acredito que o céu é o limite para ela. Se é o que ela quer, eu não preciso dizer nada. Não foi de mim que surgiu, foi uma descoberta da agência. Ela está abrindo as portas para essa geração com microcefalia que está nascendo e dizendo que é possível”, afirmou.

Segundo a coordenadora da agência, Creuza Rodrigues, o mercado ainda é restrito, mas ela afirma já recebeu várias propostas de trabalho ao ingressar Ana como profissional da moda.

Sonho de ir às passarelas é "difícil, mas não impossível", diz coordenadora de agência (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)"Está todo mundo estudando porque é uma novidade e tá todo mundo se adequando, porque nós temos que nos adequar a ela e não ela se adequar a nós. Então, a gente tem que estudar o perfil, para poder fazer um trabalho legal no futuro. Nós já estamos em aberto para várias marcas que estão querendo contratá-la como modelo", afirmou ao G1.

Preconceito
Após criar um grupo que ajuda mães do Brasil inteiro que possuem filhos com microcefalia, a funcionária pública afirmou que recebe diariamente muitas mensagens de carinho, mas que não fica livre do preconceito.

“Já são 17 anos que eu lido com tudo isso, então eu fui tão bem preparada para tudo e essa questão do preconceito ficou, para mim, como um medo lá atrás, quando ela nasceu, quando eu passei pelas situações que passei. Quem hoje faz comentários maldosos não sabe quem ela é e não sabe que quando ela nasceu o médico disse que ela não ia andar e não ia falar e que, para mim, ela estar em cima de uma passarela, é o que importa. O que os outros vão falar já ficou para trás na minha vida”, comentou.

Emoção
Durante a entrevista, Viviane se emociona e chora ao contar o que pensou ao ver a filha na passarela pela primeira vez. "Quando eu a vi desfilando passou na minha cabeça as limitações dela escritas em um papel, passou as noites difíceis que eu passei com ela, passou o medo que eu tive de perder, passou o medo que a gente tem de não saber o que é o dia de amanhã. Eu aprendi a viver de 24 em 24 horas, e o que eu estou vivendo hoje é o mais especial", afirmou.

Viviane e as filhas Júlia, Maria Luiza e Ana Victória (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)
Viviane e as filhas Júlia, Maria Luiza e Ana Victória (Foto: Indiara Bessa/G1 AM)

Fonte: G1

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Para lá do silêncio, para lá da luz - Parte II

Feche os olhos, tape os ouvidos, imagine a sua vida assim para sempre! Apesar da perda das cores e dos sons, a vida continua a fazer sentido, continua a haver lugar à felicidade, ao crescimento, ao futuro. É isso que se ensina todos os dias no colégio António Aurélio da Costa Ferreira, em Lisboa, o único centro para surdocegos em Portugal.

Parte I

Atividades e pessoas

Nas paredes do atelier há máscaras de gesso com a cara de algumas das crianças. Há barro, carpintaria, pinturas... Entramos. A Ezanilza está acabando uma jarra em barro. Está nervosa. As arestas não ficaram como a sua perfeição lhe exige. Acaba a obra com o desenhar em relevo de um ramo de flores com a ponta de um lápis. Depois, num emaranhado de gestos e alguns sons distorcidos, de quem já ouve faz tempo, informa que quer que a Juliana - outra menina que ainda tem alguns resíduos de visão - venha pintar as flores. "A Ezanilza tem muita confiança nos olhos, diz Jú.".

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Culinária e natação Fotos: CED António Aurélio da Costa Ferreira

Na sala vermelha os meninos têm menos capacidades. Quando um menino aprende a mastigar, a novidade é tida como uma vitória estrondosa. E no dia seguinte ele pode esquecer todo o trabalho feito.

No chão está "o Bebé". Um menino de cinco anos que ainda não tem um diagnóstico completo das suas deficiências, e com uma saúde muito débil. Foi adotado, rebatizado e amado. A sua história é simples: já nasceu para ser adotado, só que quando os novos pais souberam que afinal tinha uma doença, desistiram. A médica do hospital foi-se apaixonando pelo caso, levou-o para casa, serviu de família de acolhimento. Até que um dia descobriu que o Frederico - é assim que lhe chamam - fazia parte da família. Agora o tribunal também decidiu que assim será por muito tempo. Frederico adora as luzes fluorescentes na câmara escura. Adora brincar no chão e logo a seguir ao almoço vai para a porta à espera que o novo pai chegue para o levar.

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Almoço Foto: CED António Aurélio da Costa Ferreira

Antigamente, muitos meninos não reconheciam os pais, quando passaram a os reconhecer foi uma grande vitória, uma conquista progressiva, um sinal do muito trabalho em conjunto com as famílias.

Noutra sala, o Bruno conta com a voz muito presa que no fim-de-semana comeu caracóis e bebeu cerveja. Já passou a barreira dos vinte anos há algum tempo. Conta ainda que foi cortar o cabelo e arremata a sua descrição com a notícia de que a irmã teve um bebê. "O Bruno só gosta de pessoas que usem gravata. No ano passado após uma febre ficou em coma. Perdeu grande parte das aprendizagens do passado, agora, está a reencontrar-se outra vez". Sempre que lhe apresentam uma mulher, invariavelmente, pergunta: "Queres namorar comigo?".

Participação das famílias, colônias de férias, experiências no mundo

O trabalho com os pais é sem dúvida um passo importante, desse trabalho nascem muitas vezes novas esperanças para quem já não as tinha, ou para quem sem querer, as tinha arrumado numa gaveta perdida. É muito importante ir passando toda a aprendizagem que se realiza para casa, "cada gesto novo, cada nova competência, saber partilhar as dificuldades e também os sucessos, as esperanças e os sonhos.

"A grande maioria das crianças vai para casa de quinze em quinze dias, mas há também quem vá todos os fins-de-semana, todos os dias... E há os que permanecem na instituição sempre...

Será que por serem cegas e surdas estas crianças e estes adultos perdem a noção do mundo? Viajar, para eles, fará algum sentido? Claro que sim. As viagens de estudo e as férias são uma componente muito importante, uma forma de motivar alunos, educadores e famílias.

Há colônias de férias em conjunto com os pais uma vez por ano, e com direito a praia e tudo. Visitas aos lugares históricos e mil passeios. Todos os meninos já brincaram com neve da Serra da Estrela - um deles levou a brincadeira tão a sério que se despiu totalmente para que o contacto com o frio fosse maior. Já conheceram as belezas de Alcoutim. Fizeram troca de instalações com uma instituição espanhola que lhes permitiu que conhecessem a cidade de Vigo. E com algumas artes para levarem água ao moinho e patrocínios bem negociados, no ano passado foram à Madeira durante uma semana.

"Eles apercebem-se claramente que estão em lugares diferentes". Estes passeios, para além de servirem de estímulo, servem como tema de trabalho nas semanas antes e depois da partida.

E se pensa que o dia-a-dia destas crianças é de clausura no colégio está muito enganado, eles vivem as pequenas coisas da vida: vão ao cinema, ao teatro, ao McDonalds... Adoram a sensação do silêncio na pele, as pipocas, as vibrações a tocar no corpo, os resíduos de cores no fundo da tela. Nunca vão a lado nenhum sem saberem o que vão fazer, "antes de cada passeio é feito muito trabalho, conta-se a história, trabalha-se o tema". E também há viagem, os transportes públicos, a escolha dos caminhos, tudo decidido por sinais e gestos.

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Decoração de pneus que serão assentos, canteiros e outras utilidades que a imaginação lhes permite dar.
Foto: CED António Aurélio da Costa Ferreira

Há pouco tempo, visitaram a quinta pedagógica, decidiram almoçar num restaurante: "as crianças pareciam uns doutores comendo... O dono do restaurante, depois das primeiras reservas, acabou por convidá-los a voltarem". O mesmo se passa no cabeleireiro, na depilação, só não vão às discotecas. Mas se Maomé não vai à montanha... No ano passado, uma empresa montou uma discoteca no refeitório do colégio: "eles adoraram". Tal como adoram as visitas à Feira Popular: "andam em tudo!". Num dos passeios, pararam numa área de serviço na estrada, e orgulhosos os educadores ouviram a frase: "há aí muita gente que anda e vê mas são bem mais deficientes!"

Tó Zé

A conversa foi muito mais fácil do que podia parecer: uma das educadoras coloca-se à frente do Tó Zé e cada um deles agarra as mãos do outro. Começa a dança das mãos, da linguagem, da mensagem transmitida por gestos: a utilização da linguagem dos surdos através do tato. De fora parece uma dança no silencio. É difícil fazer a primeira pergunta, apenas sabemos as palavras, mas estranhamente tentamos pensar em gestos.

Tó Zé faz encadernações na Biblioteca Nacional, antes produzia as capas dos livros, mas como foi perdendo a visão foram-lhe dando trabalhos mais básicos onde pudesse apenas trabalhar com as mãos. Agora, costura as lombadas dos livros.

Além de trabalhar, gosta muito de conversar, ir à associação de surdos, e "é um festeiro". Tem uma filha. Uma adolescente que nasceu de um casamento que já acabou. A filha sabe a linguagem gestual, juntos vão para a noite, para os bares, e claro, às compras nos centros comerciais e ao café. Um dos passos mais importantes na vida do Tó Zé foi uma viagem que realizou à Bélgica a um congresso de surdocegos. Foi um marco na sua vida, conheceu muitas pessoas na mesma situação. Em Portugal não há muitas pessoas com o mesmo problema vivendo na sociedade de uma forma ativa.

Tó Zé descobriu que nos outros países existem mais soluções, outras formas de resolver os problemas de pessoas como ele. "Há mais lugares para as pessoas que não produzem tão rapidamente." A viagem abriu-lhe novos horizontes e sobretudo recebeu informações de como criar uma associação de surdocegos. Dá vontade de lhe perguntar se ele se considera uma espécie de herói. O problema é que este conceito não existe na linguagem gestual. Acabamos por perguntar: você se considera uma pessoa importante por tudo o que já conseguiu? "Não, não me sinto importante, mas sei o meu lugar na luta para o alerta do Governo e da sociedade para a necessidade que temos de intérpretes para quando vamos a um médico, a um tribunal... Temos que arranjar formas de acabar com as barreiras da comunicação."


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Sala de Bem-estar e Estimulação Sensorial Fotos: CED António Aurélio da Costa Ferreira

Tó Zé assume que é vaidoso, gosta de estar bonito, de ter roupa as adequadas e perfume. "Gosto de me mostrar bem." Mas como é que ele sabe se gosta de uma coisa? "Sente-se através das mãos. Os amigos às vezes ajudam-me a comprar as coisas. Dizem se é muito verde, ou mais azul..." Surge outra pergunta: Você se lembra das cores? "Sim, mas agora já não as vejo". A conversa continua, depois de algum tempo a tradutora desabafa: "estou ficando doida, como e que eu vou dizer-lhe isto?". Tó Zé, do seu jeito, logo arranja uma maneira.

No Refeitório, na sala, no resto da escola

No refeitório, no meio do silêncio, o barulho ganha espaço. O que se ouve ouve-se bem, e os sons ganham outro peso. Apesar de não ser mais barulhento do que um restaurante na hora de maior movimento, os sons ganham novos contornos. Começa a estranha dança das bandejas. As crianças mexem-se pela sala com total desprendimento, com as bandejas nas mãos esperam em filas que alguém os sirva, depois voltam para o seu lugar, sentam-se e comem. É raro as crianças interagirem umas com as outras, é mesmo muito raro, e quando isso acontece é devido ao estímulo dos educadores. Cada um tem o seu caminho, o seu lugar, e há quem leve isso muito a sério. Algumas crianças, umas vezes por defesa, outras por teimosia, fazem sempre o mesmo caminho, têm rituais... E isso provoca choques - e aqui a palavra pode até ser bem mais abrangente.

No meio da sala, uma menina dança agarrada as caixas de som. São as mãos que percebem os sons. Quando a música não tem suficientes baixos para sentir o ritmo, muda a estação de rádio. Dança, mexe o corpo, as ancas, a cabeça. Todo o corpo gira, as mãos captam os sons como se fossem um transmissor. O ritual repete-se e quem vê sente-se um intruso. 



No colégio, os pensamentos muitas vezes não têm segredos para quem sabe ler os significados nas mãos.

No recreio, em cima de um cavalinho de pau e mola que oscila, está a Catarina. Ela conhece bem o espaço, apesar de não ouvir e não ver nada, mexe-se com total liberdade. Trata o cavalinho por tu. As suas mãos mexem-se numa estranha dança. O que se passa? "Ela está pensando." E logo alguém traduz: "o cavalo parou! " Há quem pense com palavras, há quem pense com gestos.

Com um movimento forte, a Catarina volta a balançar o cavalo de pau na mola. Os cavalos são a sua paixão, graças aos cavalos - verdadeiros e não de pau - o seu corpo ganhou uma nova postura, passou a ter um melhor relacionamento com os outros. Os seus dias tornaram-se diferentes. O seu calendário passou a ter como referência os cavalos... ou como os adultos gostam de chamar: o tratamento de hipoterapia.

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Jardim Sensorial Fotos: CED António Aurélio da Costa Ferreira

Tudo acontecendo

Ao fim do dia, as crianças vão tomar banho e arrumar-se. Tirando os menores, todos fazem as tarefas mais elementares sem precisar de ajuda. "É muito importante torná-los o mais independentes possível." Como os olhos não vêem e ali nunca aparecem desconhecidos, não há grandes pudores quando se tira a roupa. Cada um segue em frente, escova os dentes, faz as necessidades mais elementares, despe-se, toma banho, veste o pijama. As gavetas das cuecas têm pequenas cuecas recortadas coladas por fora, o mesmo se passa com os soutiens e o resto. Uma criança de dois anos está sentada no penico, mesmo sem fazer nada é obrigado a permanecer... é assim que se conquista cada passo rumo à independência.

As educadoras, como um maestro, vão orientando as operações com gestos tocados. Parece mímica. Sempre que transmitem as suas ordens e conselho, dizem em voz alta o que falam com as mãos. Porquê? A resposta é simples: "senão era tudo um silêncio!" O engraçado é que, mesmo quando nos respondem, as mãos não param.

Todas as estrelas no céu.


O calendário e o tempo passam com ritmos diferentes dentro deste colégio, mas o Natal e as festas populares nunca passam sem festa. Para o Natal deste ano, cada pessoa recebeu em casa, juntamente com o convite, uma estrela amarela com o seu nome. Antes do almoço de Natal, os meninos representaram uma peça de teatro sobre O Pequeno Príncipe". Pais e amigos foram ver a representação. Um trabalho de equipe que mobilizou muita gente.

No Colégio vive também um pequeno grupo de meninos sem deficiências - os "ouvintes" - esses meninos vão muito em breve para outros lares da Casa Pia de Lisboa, instituição que tutela o colégio. Uma oportunidade desta poder desenvolver novos valores.

Os meninos "ouvintes" também entraram na peça de Natal. Para além de ler as falas de cada personagem, orientaram, vestidos de preto, os meninos surdocegos no palco improvisado. "Parecia um espetáculo de marionetes a fingir". Todos os personagens estavam vestidos e maquiados para representarem os seus papéis. A semelhança destes meninos com o Pequeno Príncipe é incrível: "Todos eles nos marcam com as suas diferenças e o seu cativar, com a sua magia".

No final da peça, meninos, educadores, empregados e pais colaram as estrelas amarelas com o seu nome no cenário azul da parede. Um céu azul ficou iluminado de estrelas amarelas. É que tanto nesta escola como na vida, o mundo só se faz com a participação de todos. Toda a gente tem o seu lugar, mesmo que para lá do silêncio, mesmo que para lá da luz.

Fonte: BengalaLegal


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

“Cada dia com nossas filhas é um presente”, diz mãe de duas meninas com microcefalia

Gwen Hartley com suas filhas Clareie e Lola. Foto: Gwen Hartley
Gwen Hartley é mãe de três crianças, duas das quais – Claire e Lola – têm microcefalia. Apesar de reconhecer que o dia a dia é complicado e difícil, assegura que cada um de seus filhos é “uma bênção”. Não existe nenhum motivo para que fiquem com pena da sua família. “Há momentos difíceis, mas nunca duram muito porque temos muito mais motivos para estar felizes. Cada dia com nossas filhas é um presente e cada dia rezo para que estejam conosco mais tempo”.

Seu primeiro filho, Carl – que atualmente tem 17 anos –, nasceu sem complicações. Durante a gestação de sua segunda filha, Claire, todas as ultrassonografias mostravam resultados normais. Entretanto, quando nasceu, Gwen ficou surpreendida pois a sua cabeça era muito pequena. Embora o médico não tivesse um diagnóstico, disse aos pais que “algo estava mal”.

Depois de um tempo especialmente difícil no qual não sabiam o que acontecia com Claire, finalmente foi diagnosticada com microcefalia, tetraplegia espasmódica, paralisia cerebral, epilepsia e deficiência visual cortical.

O médico também lhes advertiu que havia 25 por cento de possibilidades de que se tivessem outro filho este poderia nascer com as mesmas doenças.

Segundo o médico, Claire não viveria mais do que um ano. Como sua condição era extrema, o doutor pediu aos pais que assinassem um documento no qual estabelecessem que, se a menina ficasse gravemente doente, não lhe administrariam nenhum medicamento ou reanimação.

Os pais se recusaram a fazê-lo e disseram que, caso sua filha tivesse os dias contados, ela seria levada para casa e cuidada por sua família. Contra todo prognóstico, Claire completou o seu primeiro ano.

Embora intuíam que poderia haver uma causa genética na doença de Claire, não obtiveram resultados lógicos nos estudos realizados em seus pais Gwen e Scott. As possibilidades de que um novo filho nascesse saudável eram de 75 por cento e, por isso, tiveram outro bebê chamado Lola.

As ultrassonografias da bebê mostravam tudo normal até a 22ª semana, quando o médico notou algo estranho. Tiveram que esperar mais quatro semanas para confirmar as suspeitas: “Foi o mês mais longo da nossa vida”, expressou Gwen. “Finalmente soubemos que Lola também nasceria com microcefalia”.

“Já sabíamos como cuidar de Claire. Ela nos faz imensamente felizes e nos ensinou coisas que nunca teríamos aprendido se ela tivesse nascido sem essa deficiência. Não queremos ser novamente quem éramos antes de ela chegar”, assegurou a mãe.

“Por alguma razão, estávamos chamados a ser pais de duas crianças com esta deficiência”, ressaltou.

“Agora, as duas meninas que supostamente não viveriam mais de um ano completarão 10 e 15 anos em 2016. E são as pessoas mais fortes que jamais conheci”, afirmou orgulhosa a mãe.

Desde que aumentaram os casos do vírus zika e durante a emergência sanitária estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as visitas ao blog de Gwen aumentaram bastante.

A mãe Gwen Hartley espera que seu testemunho seja uma “fonte de esperança e inspiração para os pais que podem estar assustados”.

Nesse sentido, Gwen ainda afirmou que em várias ocasiões leu que alguns dizem: “A microcefalia é um defeito de nascimento terrível” originado pelo zika. Com relação a isto comentou: “Não vejo minhas filhas com terríveis má formações de nascimento. Eu as vejo preciosas. Para mim, não é um defeito congênito horrível e abominável. Aos meus olhos, são muito lindas”.

“Vejo como as pessoas dizem: não deixemos que isso aconteça nunca mais a ninguém. Na verdade, ouvir isso machuca”, concluiu.

Fonte: acidigital.com

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Pai larga emprego e projeta cadeira de rodas que ‘liberta’ filha com paralisia

Neste domingo (05/02/17) saiu a reportagem no Jornal Folha de São Paulo sobre a maravilhosa invenção de Mário Alvitti da Empresa Fly Children.

Ana Paula Alvitti, filha do Mario e da Fernanda.

Nas imagens abaixo se encontram os pais de Ana Paula Alvitti, essa garotinha linda das fotos. Ana Paula nasceu em dezembro de 2013 sem qualquer problema de saúde. Aos 8 meses de idade ficou paraplégica. Mário possui formação na área de enfermagem e Fernanda é fisioterapeuta. Decidiram fabricar no Brasil uma cadeira de rodas para casos motores semelhantes ao da Ana Paula.

Fernanda Cristina Teixeira (Mãe) Mario Fernandez Alvitti
Fernanda Cristina Teixeira e Mario Fernandez Alvitti

Silvia Martins, Diretora Geral da Martins & Fernandes conta que o pedido de registro da patente da cadeira infantil da Fly Children para crianças com mobilidade reduzida tem uma importância maior do que apenas assegurar sua marca e imagem. “Eu acompanhei todo o processo de concepção do produto e entendi que era necessário não somente proteger a marca, mas, proteger o produto, o que significa, garantir a segurança das crianças. Ter cópias malfeitas da cadeira por aí, em desconformidade com o projeto original, é colocar a vida das crianças em risco”, explica a empresária.

Cadeira infantil da Fly Children para crianças com mobilidade reduzida.
Cadeira infantil da Fly Children para crianças com mobilidade reduzida.

E para assegurar a proteção do produto e das crianças, foram encaminhados dois pedidos de registro de patente Instituto Nacional da Propriedade Industrial INPI. O primeiro referente ao modelo de utilidade, e o segundo de desenho industrial, o layout da cadeira propicia o conforto, a autonomia e a segurança da criança em seu uso.

Vejam a reportagem do Jornal Folha de São Paulo no site.

Com isso, foi possível formalizar a empresa Fly Children que comercializa as cadeiras por meio de seu e-commerce. Porém, o pai da pequena Ana explica que o objetivo nunca foi gerar negócios com o produto, e sim, atender as necessidades de sua filha, e, posteriormente, de outras crianças. “A venda das cadeiras é necessária para que novas cadeiras sejam produzidas. O investimento é muito alto. Nós fazemos muitas doações, mas algumas precisam ser vendidas para que a produção seja autossustentável”, relata Mario.

Silvia Martins conta que quando o projeto chegou até ela foi impossível não se comover com a história. “Nós registramos marcas e patentes todos os dias, mas nunca um registro foi tão importante para nós como a cadeira da Fly Children. Tenho orgulho de ter contribuído para que esse produto pudesse chegar até famílias que precisam e que possa melhorar a vida de tantas crianças. Já sabíamos da importância do registro de marcas e patentes porque respiramos isso no dia a dia, mas, poder registrar um produto como este realmente nos trouxe uma alegria imensa, e foi por isso que decidimos levar até a Feira do Empreendedor Sebrae-SP 2017 esse case de sucesso”, conta Silvia Martins.

Como adquirir a cadeira da Fly Children e outras informações pelo site: http://www.flychildren.com.br/.

Fonte: Martins & Fernandes

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Autismo: representatividade importa

Em 2016 abordei em um texto o fato de, em eventos e seminários sobre autismo, muitas vezes haver a preocupação em reunir especialistas e familiares dos indivíduos com TEA, mas estes mesmos não serem escutados. Felizmente venho acompanhando uma mudança nesse cenário e a tendência cada vez maior de as pessoas com autismo participarem de movimentos que dizem respeito a elas como protagonistas do processo. Afinal, este é o lugar que, de fato, devem ocupar.


Se, em alguns momentos, um relato pessoal pode não substituir (em questões técnicas) uma explanação de um profissional sobre algo referente ao transtorno, não podemos perder de vista que a recíproca também é verdadeira e cada um tem propriedade para falar apenas do lugar que ocupa. Os profissionais podem falar do lugar de profissionais, os pais podem falar apenas do lugar de pais, mas só um sujeito com autismo pode falar de si, de sua realidade, de como é estar em sua pele e em seus sapatos. Os demais podem apenas especular como seria, mas não sabem como é.  A pessoa só possui propriedade de falar de mais de um desses lugares, se de fato ocupá-los, o que, felizmente, também é possível. Afinal, o sujeito pode, por exemplo, ocupar os três lugares supramencionados (sujeito com TEA, pai de indivíduo com  TEA e profissional da área) simultaneamente e isso é menos raro do que imaginamos. Na medida em que a visão estereotipada e preconceituosa que ainda permanece em nossa sociedade sobre “como seria uma pessoa com autismo” ou “ até onde ela poderia chegar” for repensada, tal ideia será reconhecida com menos resistência.

Em meu caso, quando me atrevo a escrever sobre o assunto, é totalmente ciente de minhas limitações e com ciência que posso relatar apenas uma perspectiva de mãe (nem como terapeuta me atrevo a falar, já que minha atuação profissional como psicóloga é em outra área), e que isso nunca irá substituir as próprias impressões e percepções que, daqui a um tempo, meu filho irá elaborar e transmitir, por si mesmo.  Quando uma mãe ou um profissional que não estão no espectro (reforçando que uma coisa não exclui a outra), tentam pensar em “como seria” viver com tais questões e o que poderia ser feito para agregar qualidade de vida a quem convive com elas, isso jamais poderia substituir a escuta sobre estratégias desenvolvidas sobre quem de fato vive a situação e, consequentemente, possui mais propriedade no que se refere a ela.

Com isso, de maneira alguma espero que alguém incorpore algum tipo de “porta voz” da causa, pois as experiências são realmente diversas, o espectro é amplo e não podemos falar em autismo e sim em “autismos”. Cada um pode se expressar apenas por si, mas devem se fazer ouvir sempre que possível e contribuir para fortalecer uns aos outros enquanto grupo.

Essa lógica de empoderamento é a que norteia o famoso lema “Nada sobre nós, sem nós”, muito usado por pessoas com diversas deficiências e que diz muito sobre esta luta/busca por visibilidade, representatividade e participação plena, no sentido de que, com relação a tudo o que diga respeito a essas pessoas (inclusive construção de políticas públicas), elas deverão participar ativamente como sujeitos do processo, e não objetos. É muito diferente algo ser pensado e elaborado “para” alguém e “por” ou “ com” alguém.

Segue neste link um artigo sobre o tema, de autoria de Romeu Kazumi Sassaki, cuja leitura é extremamente rica e esclarecedora e traz reflexões como essa: “ ‘Nada sobre nós, sem nós’ expressa a convicção das pessoas com deficiência de que elas sabem o que é melhor para elas”.

Érika Andrade, mãe do Bernardo, Psicóloga e administradora do instagram @maternidadeazul.
Matéria extraída do criancaesaude.com.br