Aline Melo para o Diário do Grande ABC | dgabc.com.br
As alterações promovidas no cotidiano por causa da pandemia de Covid-19 são diversas e têm diferentes alcances. Para pessoas com deficiência, medidas aparentemente simples podem significar novas dificuldades em suas vidas já marcadas pela ausência de uma inclusão efetiva. Máscaras são obstáculos para a comunicação de surdos; a determinação de evitar contato físico dificulta ainda a vida de cegos e as mudanças de rotina afetam de diferentes maneiras crianças, adolescentes e adultos que têm TEA (Transtornos do Espectro Autista).
A auxiliar de biblioteca, Marcia de Oliveira Freitas Ramalho de Sousa, 47 anos, moradora de Santo André, é deficiente visual e tem encontrado dificuldades nas atividades que realizava cotidianamente, como ir ao mercado. Após a pandemia, não conseguiu que um funcionário a acompanhasse durante as compras, com a alegação de que não seria possível que ela tocasse no trabalhador. “Na verdade, ele poderia me conduzir pelo carrinho, eu usando máscara, não haveria riscos”, ponderou.
Marcia alerta que até para obter ajuda para atravessar uma rua ficou mais difícil. “Já teve casos de a pessoa dizer ‘pode ir’. Não é assim, quando for oferecer ajuda a um cego, primeiro pergunte do que ele precisa, o diálogo é a base de tudo”, ensinou. A moradora acredita que a Prefeitura deveria ter um cadastro de quantas pessoas com deficiência visual vivem na cidade para ofertar auxílio, não somente neste período de pandemia. “Ofertar um carro para uma consulta médica, para um deslocamento, seria importante”, avaliou.
Para quem precisa da expressão facial e da leitura labial para se comunicar, o uso de máscara vira grande obstáculo. A microempreendedora Debora Medeiros, 32, é mãe de Emily, 12, que perdeu a audição com 1 ano e seis meses. A criança usa implante, mas se comunica por meio de Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) e de leitura labial. “Dentro de casa ela não está usando máscara, mas sabe que se sair, vai ter que usar”, relata a mãe. Debora lamenta que o mercado não tenha pensado em produzir máscaras transparentes para este público. “Comigo mesmo ela se comunica por leitura, porque eu não domino Libras”, citou.
Caroline Maciel dos Reis, 23, é moradora de São Bernardo. A jovem, que tem síndrome de down, sente falta de poder sair para o curso de marketing pessoal que faz em uma ONG (Organização Não Governamental) da cidade. Sua mãe, a vigilante Rose Maciel Reis, 50, relata que a filha praticamente não tem saído de casa e anseia pelo fim da quarentena.
Coordenadora da ONG Conecta PCD, de Santo André, Ana Paula Brasil, 39, é mãe de dois adolescentes, ambos com TEA. Mikaell, 14, é autista leve e, se não for por muito tempo, não tem muitos problemas para usar a máscara. Já o Vitor, 15, é autista severo não verbal e não consegue usar o acessório. Recentemente, Ana Paula precisou ir ao mercado na companhia do filho, que por não usar máscara, foi impedido de entrar no estabelecimento. A mãe argumentou que o garoto não conseguia usar a proteção facial e ele foi autorizado a entrar, mas Ana Paula passou pelo constrangimento de ouvir o locutor do mercado anunciar, insistentemente, sobre a lei que exigia o uso de máscaras.
“Minha rotina tem sido muito difícil. O Vitor ia para escola especializada, para as terapias e com o passar do tempo da quarentena foi ficando mais nervoso por causa da saída da rotina. Precisamos aumentar a medicação e hoje não temos como fazer as coisas que promovem a inclusão deles, como ir ao parque ou ao shopping”, relatou. “Me causa muito espanto ver que essas regras que estão impostas está afetando e acabando com a inclusão que a gente luta tanto para promover. Quando comércios, serviços e parques reabrirem, nossos filhos, que não conseguem usar máscaras, vão ter que ficar de fora”, lamentou Ana Paula .
Redes municipais de três cidades têm 938 alunos com deficiência
As redes municipais de ensino de Santo André, São Bernardo e São Caetano têm 938 alunos com deficiência visual e/ou auditiva em suas unidades escolares – as outras quatro cidades do Grande ABC não informaram os dados.
Em Santo André, os Polos de Deficiência Visual e Bilingue, que acolhe 80 alunos cegos, com baixa visão ou surdos, continuam disponibilizando propostas adaptadas para atender as necessidades dos frequentadores, agora por meio remoto. Na página da Prefeitura do Facebook está disponível websérie com cinco vídeos voltados para as pessoas com deficiência.
Também foi disponibilizada uma cartilha para familiares e cuidadores de pessoas com deficiência, com orientações e cuidados necessários, que pode ser acessada no link encurtador.com.br/ctzFJ.
Em São Bernardo, 258 alunos têm atendimento educacional especializado por meio do SAPDV (Serviço de Apoio à Pessoa com Deficiência Visual) e na Escola Bilingue Neusa Bassetto, além dos polos para alunos surdos ou com deficiência auditiva nas Emebs (Escolas Municipais de Educação Básica) Olavo Bilac e Neusa Macellaro, para educação infantil e fundamental. Em todos os equipamentos atuam professores especializados que adaptam os materiais conforme as necessidades e o trabalho segue no modo on-line.
Diretora da escola Neusa Masselaro, Jussara Almeida Bezerra destacou que a tecnologia é grande aliada da inclusão e que os alunos que não contam com acesso a internet ou a computadores e smartphones estão enfrentando dificuldades. “Para o surdo a tecnologia é uma fonte inclusiva que dá autonomia, mas quando ele não tem, se torna um elemento de exclusão muito forte”, destacou.
São Caetano tem 600 alunos com deficiências na rede e as pastas responsáveis elaboraram sequências didáticas individualizadas, considerando as necessidades destes estudantes.
Os alunos cegos utilizam aplicativos específicos que realizam a leitura das atividades postadas na sala Google (NVDA: leitor de tela gratuito) e outros que recebem as atividades impressas em Braille. Para os estudantes surdos, as sequências didáticas/atividades seguem com legenda em Libras (Linguagem Brasileira de Sinais). Quando não há acesso às mídias também recebem material impresso utilizando o recurso de imagens/fotos em Libras.
Diadema não informou quantos alunos com deficiência estão na rede e afirmou que a Secretaria de Educação ainda está produzindo materiais adaptados para atender esse público.
Público precisa de protocolos específicos
Para especialistas e familiares de pessoas com deficiência, o poder público deve pensar protocolos específicos para essas pessoas. Coordenadora da ONG (Organização Não Governamental) Conecta PCD, de Santo André, Ana Paula Brasil tem dois filhos com espectro autista e defende que os parques, por exemplo, sejam abertos em horários específicos para este público.
“Os parques, ou alguma quadra escolar, poderia ser aberta com atividades físicas para as crianças com espectro autista poderem se exercitar, gastar energia, porque eles estão todos no limite. Usando máscara, quem pode, passando álcool gel, seria seguro”, defendeu.
Em Santo André, a Prefeitura está cadastrando pessoas com deficiência e que não conseguem usar as máscaras. Já foram emitidas 110 autorizações e o cadastro pode ser feito no link bit.ly/2TG3daG. Até o momento, a cidade é a única da região a tomar atitude nesse sentido.
Coordenadora da ONG Mais Diferenças, que desenvolve projetos de educação e cultura inclusiva em São Paulo, Carla Mauch lembrou que as pessoas com deficiências não podem ser olhadas de uma forma uniforme, pois cada uma tem suas necessidades e especificidades. Carla destaca que, mesmo pessoas sem qualquer tipo de deficiência, têm se mostrado resistente ao uso de máscaras e cumprimento de protocolos, logo não seria diferente com os deficientes.
“É importante dizer que muitas pessoas com deficiência não estão incluídas, que as políticas publicas são frágeis e que elas também integram grupos de risco. Imaginem uma criança ou adolescente com espectro autista que se contamine com a Covid-19 e precise ficar internada sem acompanhante. Isso precisa ser revisto”, apontou.
Carla lembrou que a pandemia trouxe para a sociedade uma situação de isolamento e exclusão que é muito dura, mas que é a realidade de muitas pessoas com deficiência e que também são cidadãos como todos os outros. Como nós, como sociedade, isolamos essas pessoas por tanto tempo e nunca pensamos nisso”, questionou.
Deficiente visual, palestrante, pianista e escritor, Ari Protázio ponderou que pandemia acentuou as dificuldades da falta de inclusão. “Como navegar na internet se o site não tem todas as funcionalidades, como assistir TV se ela não é acessível. Neste momento, e em todos, é preciso ter empatia com o próximo”, afirmou.
Sociedade deve se adaptar às necessidades dos autistas
Entre os públicos com mais dificuldade para o uso de máscaras estão as pessoas com TEA (Transtorno de Espectro Autista). Doutora e mestre em distúrbios do desenvolvimento, Carolina Quedas afirma que é a sociedade quem deve se adaptar às necessidades deste grupo e não o contrário.
“Eles vêem e sentem o mundo de maneira diferente. A rotina é muito importante porque eles não conseguem se adaptar à mudanças bruscas”, declarou Carolina.
Para a especialista, faltou o poder público pensar detidamente nas necessidades das pessoas com deficiências. “Principalmente as famílias que necessitam de atendimento público. Tenho relatos de famílias que não conseguem achar o médico para pegar nova receita, por exemplo”, destacou.
“Na área de educação, poucas escolas estão preparadas para o atendimento educacional desta população e agora ficou bem claro isso. Não culpo professores, mas claramente o poder público está falhando neste ponto”, concluiu.
Referência na área de direito de vulneráveis, o advogado Marcelo Válio relatou que foi aprovado pela Câmara dos Deputados, na última semana, projeto de lei federal que trata da obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos, mas determina que pessoas deficiências que as impeçam de fazer o uso adequado do item de segurança estarão dispensadas da obrigação. No entanto, ainda que sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a norma pode não se aplicar aos Estados e municípios, devendo estes aprovarem leis específicas.
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