Falta de terapia e convívio social gera preocupação no desenvolvimento das crianças neuroatípicas e com síndromes raras
É marcado nessa sexta (21) o início da Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla. A data acende um alerta para as necessidades específicas deste grupo e no cenário de pandemia traz a necessidade de olhar para a realidade dessas pessoas durante este período, que impõe ainda mais dificuldades frente à falta de políticas efetivas voltadas para este público.
De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são quase 46 milhões de brasileiros que possuem deficiência mental ou declaram ter algum grau de dificuldade em uma das habilidades investigadas (enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus). Cada uma das especificidades dessas pessoas traz consigo uma realidade diferente, e em meio ao isolamento social, novas preocupações surgem. Para famílias que tem crianças com deficiência e doenças raras em casa, a preocupação é principalmente a saúde e o desenvolvimento delas.
Raquel Jardim mora em Serra Talhada, no sertão de Pernambuco e é mãe de Joaquim, criança de três anos diagnosticada com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ela explica que antes da pandemia, tinham uma rotina em que o filho ia para escola, tinha terapias pela tarde, e sempre gostava de ir à pracinha do bairro para brincar. "De repente tudo mudou. O autista gosta de rotina, e não gosta de estar no ócio. Eu vi Joaquim ficar muito estressado e suas estereotipias aumentaram bastante. Ele, inclusive, ganhou uma nova estereotipia".
As estereotipias são ações repetitivas comuns às pessoas com TEA para lidar com o excesso de estímulos. "Agora tudo que ele pega que é diferente, ele joga no chão. A gente perdeu muito vidro, muito espelho, por ele jogar no chão e quebrar, e isso a gente acha muito grave", lamenta a mãe.
Atendimentos terapêuticos e aulas virtuais
Joaquim, que fazia acompanhamento com terapeuta ocupacional e psicopedagoga, além de fonoaudiologia, hidroterapia e terapia, continuou apenas com alguns atendimentos terapêuticos online, sem que a mãe visse surtir muito efeito, especialmente por não poder se dedicar exclusivamente à ele e ter que cumprir com as atividades domésticas e demais obrigações. "A minha grande preocupação é por conta da plasticidade cerebral, porque os estudos dizem que as crianças desenvolvem até os três, quatro anos, e Joaquim já tem três anos e sete meses e ainda não verbaliza e existem atrasos”.
Já Carla Lima, mãe da pequena Sophia, que tem uma síndrome rara degenerativa chamada Sanfilippo, conta que a falta das terapias para sua filha tem ocasionado uma piora ainda maior em sua condição física e mental, e, inclusive, Sophia passou a comer com dificuldade. "Até a saliva ela está tendo dificuldade de engolir enquanto dorme. Estamos fazendo algumas adaptações, tentando continuar com as caminhadas à noite e correr atrás das terapias perdidas, mas não têm sido fácil de conseguir". A síndrome fez com que ela perdesse o desenvolvimento motor e mental após os três anos, e hoje, com sete anos, Sophia não fala mais.
Tanto Joaquim quanto Sophia estudam e estão com as aulas suspensas. Ter acompanhamento online, além de ter efetividade questionável por muitas famílias, é inviável para muitos, por falta de aparatos tecnológicos, acesso a internet e até mesmo um ambiente seguro e apropriado para realizar o atendimentos ou aulas remotas.
Segundo a pesquisa TIC Domicílios, feita em 2019 pelo Centro Regional e Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), 74% da população tinha acesso à internet, enquanto um a cada quatro brasileiros não usa a internet, o que corresponde a 47 milhões de não usuários. Além disso, o celular é o dispositivo mais usado (58% acessam a internet somente pelo celular), o que dificulta o acesso à aulas online ou acompanhamentos terapêuticos.
Mesmo assim, o Governo Federal teve como uma das poucas ações divulgar uma cartilha com orientações para auxiliar pais em estratégias para o acompanhamento escolar online de crianças com deficiência durante a quarentena.
A psicóloga expressa preocupação em como a comunicação tem chegado nas famílias "Pensando nas crianças surdas, tenho pensado muito em como tem sido a qualidade das aulas online, por exemplo. Tem sido efetivo? Tenho alunas surdas na pós graduação e às vezes percebo um esforço para elas entenderem o que está sendo sinalizado porque a internet fica lenta e elas perdem o movimento da mão. A questão visual é muito importante para as pessoas surdas", comenta e afirma que estar em isolamento não é igual para todo mundo e está diretamente ligada a realidade social e econômica de cada família.
Descaso
Patrícia do Bonfim, presidente do Grupo Raros, associação em Petrolina formada por familiares de crianças com síndromes raras, afirma que até o momento nem o Governo Federal, nem o Estadual, tomaram medidas voltadas para crianças com deficiência e/ou doenças raras. "Com relação à educação, as crianças que são da rede municipal receberam kits pedagógicos. Não sou pedagoga, mas sou mãe de uma criança com síndrome rara, e ao meu ver, esses kits, por mais que tenha um trabalho por trás, não são adaptados às necessidades especiais de cada criança. São kits apropriados para crianças típicas."
A presidenta da associação explica que àqueles que possuem plano de saúde recebem atendimento remoto, ainda que não seja na mesma qualidade. Mas os que não possuem, não contam com nenhum tipo de suporte.
Apesar do retorno gradual de alguns atendimentos, o PE Conduz, por exemplo, transporte gratuito para pessoas com deficiência e dificuldade de mobilidade em Pernambuco, está suspenso desde março e sem previsão de retorno, mesmo com o apelo de muitas famílias que dependem exclusivamente desse meio de transporte para mobilidade. O PE Conduz, por enquanto, está com serviço apenas para os casos de hemodiálise, que incorrem em risco de vida.
Nesse cenário, Patrícia defende que o governo deveria disponibilizar profissionais adequados pelo menos uma vez ao mês ou a cada quinze dias à domicílio, para as pessoas que não podem ficar sem os tratamentos de nenhuma maneira. “É o caso de algumas crianças e adolescentes, por exemplo, que possuem disfagia ou atrofias que precisam de fisioterapia intensa. Essas famílias estão desesperadas”.
Mulheres como cuidadoras
Segundo uma pesquisa realizada pelo Gênero e Número e SOF Sempreviva Organização Feminista, 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia e 72% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia a alguém. Entre as mulheres responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, quase 3/4 afirmaram isso.
O papel de cuidadora, já atribuído às mulheres, se intensificou. Para as mães de crianças com deficiência, sem suporte de cuidadores, secretárias, mediadoras escolares e com rede de apoio reduzida, a carga mental é pesada. "Vi minha saúde ser afetada e tive crises de ansiedade. Nunca consegui tirar tempo para mim mesma. As pessoas dizem para eu assistir uma série na Netflix, e isso é uma coisa que eu não consigo, porque não tenho tempo", conta Raquel, apontando que a única coisa que ainda consegue fazer é publicar em seu Instagram, canal que ela, que também é ativista, escolheu utilizar como blog para conscientizar seus seguidores sobre o autismo.
Para Carla, a situação não é diferente. “Não tenho tempo pra mim, vivo em função dela. Ela depende de mim para tudo: comer, vestir, tomar banho, trocar fralda, cuidar da segurança. Amo cuidar dela, embora seja cansativo”. Além disso, Carla ainda lida com dificuldades de aceitar que a síndrome de sua filha não tem cura, e acredita que as mães dessas crianças deveriam ter acompanhamento psicológico rigoroso.
As duas contam com o apoio dos pais das crianças, ao que Raquel prontamente diz: “ele é um pai de verdade. Ele não me ‘ajuda’. Ele faz o que tem que fazer, entende as obrigações dele. Ele é o meu suporte”.
Entretanto, essa não é a realidade de todas as mães. Eugênia Souza afirma ter percebido que na maioria esmagadora das vezes esse papel de cuidar é atribuído às mães, também com crianças típicas, mas especialmente com crianças atípicas, e que as poucas figuras masculinas vistas nas instituições pelas quais ela passou eram vistas apenas como uma ajuda às mães. “Isso tem relação com a nossa cultura machista, que identifica a mulher como a figura cuidadora. E eu percebi nessas mulheres um lugar de adoecimento mental. Para além do cansaço físico, mental e emocional, por estarem sobrecarregadas, isso acabava resultando em quadros depressivos e de ansiedade”.
Edição: Vanessa Gonzaga