Psicóloga especialista em educação inclusiva, colaboradora da Afapa e professora de Psicologia, Cristina Py Mairesse é a entrevistada em Dia das Crianças inédito em razão da pandemia de covid-19.
Anderson Dorneles para o #EntrevistaHumanista
Dia 12 de outubro é a data dedicada à celebração da infância no Brasil. E você já está acostumado a ver reportagens abordando o tema, das mais às menos originais, sempre no entorno do dia 12. Mas, em 2020, o Dia das Crianças está diferente, pois ocorre durante a maior pandemia em 100 anos. A covid-19 mudou a rotina de quem tem crianças em casa. E o Humanista conversou com a psicopedagoga Cristina Py Mairesse para saber como está sendo enfrentar o novo coronavírus para famílias que convivem com o autismo.
Cristina é especialista em educação inclusiva, colaboradora da Afapa (Associação de Familiares e Amigos das Pessoas com Autismo de Porto Alegre) e professora no curso de Psicologia da Faculdade São Francisco de Assis. Ela fala sobre as rotinas das crianças com autismo durante a pandemia e o que se pode fazer para tornar esse momento mais saudável. Também aconselha: “O lado emocional deve ser priorizado”. Confira a entrevista completa!
O que é o TEA (Transtorno do Espectro Autista)?
Podemos dizer que não existe uma única forma de definirmos o TEA (Transtorno do Espectro Autista): existiram e coexistem diferentes critérios classificatórios dentro da psicopatologia – psiquiátrica e/ou psicanalítica (Texto produzido pelo G7, Correio da APPOA, 2013, p. 26). O que parece ser comum entre os critérios apresentados por ambas visões é a dificuldade de interação com o semelhante, inicialmente percebido por quem faz os primeiros cuidados com o bebê, que podem ser os pais, avós e ou professores das escolas infantis.
Em alguns casos, os sinais não são percebidos antes do primeiro ou segundo ano de vida. Algumas crianças com autismo não verbalizam nada ou falam rudimentarmente, sendo uma fala muito aquém ao esperado para a idade. As estereotipias geralmente estão presentes, através de um brincar repetitivo, sem a presença do simbolismo. Ela pode simplesmente rodar um objeto ou olhar para uma ação qualquer, como os movimentos de um objeto presente no seu cotidiano, como rodas, ventiladores, etc. Enfim, são diferentes comportamentos que nos revelam uma dificuldade maior da pessoa em interagir com o mundo externo, podendo se manifestar através da ausência de uma reciprocidade do olhar e de troca com seu cuidador(a).
As crianças com autismo têm mais dificuldades para se adaptar ao isolamento social?
Depende de cada criança, porque vai depender muito da organização familiar dessa criança e da possibilidade até de uma reorganização da mesma. No início da pandemia, nós estávamos falando em permanecer de 15 a 20 dias em casa e hoje nós estamos fechando quase 7 meses de isolamento. A gente ainda não tem uma previsão de retorno à normalidade. Algumas crianças autistas conseguiram se adaptar super bem ao uso da máscara e outras não, então a gente não tem como generalizar. Pra elas e pras outras crianças pequenas pode ser mais difícil porque mudou muito a rotina, mas eu vejo crianças que se adaptaram bem, assim como vejo famílias e crianças com autismo com muita dificuldade. Eu escuto relatos de crianças que estão trocando o dia pela noite e isso é prejudicial para o seu desenvolvimento ao longo dos meses. Eu não sei se tem como a gente mensurar se é pior para as crianças autistas em específico, talvez seja difícil para todas as crianças, pois os pais precisam lidar com uma situação que não foi planejada e, muitas vezes, têm de assumir o ensino dessas crianças.
Nesse momento tão delicado, quais atividades podem ser interessantes para ajudar na saúde mental e bem estar de crianças com transtorno do espectro autista?
Eu acredito que os pais têm que se despir desse papel de professor dos seus filhos, porque às vezes os pais estão tão preocupados em dar conta do conteúdo escolar que esquecem do principal: de serem pais. Às vezes é bom poder estar junto com o filho, sentar no chão, fazer uma brincadeira, passear, olhar um filme, fazer as atividades cotidianas, tudo dentro do que o filho era capaz da fazer antes do início do isolamento social.
Neste momento, não tem como a gente se preocupar tanto com os aspectos dos conteúdos escolares, a gente tem que se preocupar muito mais com as interrelações familiares. Se possível, da gente poder estar próximo, fazer alguma coisa que já fazia antes e continuar fazendo, ou aproveitar para tentar ensinar algo novo, como andar de triciclo, bicicleta, jogar bola. E, claro, tudo dentro da realidade de cada família. A gente não sabe do que cada criança gosta ou iria gostar, então eu sempre digo para os pais partirem do mais simples e do que sabem que seus filhos gostam. Se a criança gosta de música, vamos tentar música. Se possível diminuir a exposição às telas para que elas possam interagir e conversar. Favorecer o brincar e o estar junto com a criança é muito importante.
Com a ausência de atividades escolares, o que os pais podem fazer para que as crianças não tenham tanto prejuízo do ponto de vista psicopedagógico?
É tudo muito novo ainda, nós também estamos aprendendo a como lidar com essa situação da pandemia. Porém, o lado emocional deve ser priorizado. Se a criança não for alfabetizada agora, ela pode ser alfabetizada depois, mas os danos emocionais e de autoestima podem ser difíceis de se reverter. Então, encontrar atividades e brincadeiras que façam com que a criança se sinta bem e socialize com os pais é muito importante. Trabalhamos, através das brincadeiras, noções que são fundamentais para a aprendizagem formal.
Qual é a importância de se manter uma rotina escolar com aulas, mesmo que à distância?
Eu sei que algumas crianças não estão conseguindo nem receber as atividades que são preparadas pelos seus educadores e outras, por outro lado, que estão recebendo a atenção individual de seu professor, tendo um momento com ele. Porém, a gente tem que entender que cada caso é um caso, não adianta querer forçar a criança a ficar na frente de uma tela. Sabemos o quanto a rotina organiza a vida dessas crianças, pois é algo que as auxilia a poderem ter um mínimo de confiança no ambiente. E, quando as famílias estão mais organizadas, as crianças acabam se tranquilizando também, pois percebem que as pessoas a sua volta estão mais tranquilas. Então, a rotina é importante não só para as crianças com espectro, mas para todas as crianças. A gente não pode deixar que uma criança troque a noite pelo dia, por exemplo. É importante lembrar que também está sendo difícil para as escolas poderem auxiliar alguns alunos, pois algumas famílias não têm acesso à internet ou a uma plataforma, sem falarmos nas condições emocionais e pedagógicas para ensinar em casa. O importante de se ressaltar é que cada criança é única e que não existe uma receita universal. Existem diferentes especificidades dentro do espectro autista e nós precisamos pensar em cada criança de maneira única.
Qual é a eficácia do atendimento clínico à distância?
Cada caso é um caso. Tem crianças que estão evoluindo bem até sem atendimento nenhum, nem à distância. E tem crianças que estão com mais dificuldades, percebidas através de um agravamento dos comportamentos que já estavam presentes, como gritos, estereotipias, entre outros, ou pelo aparecimento de novos. Tem crianças que a gente se surpreende em como elas conseguiram ao longo dos atendimentos on-line evoluir e em como as famílias conseguiram se reorganizar, mas outras não. Tem crianças que conseguiram se adaptar ao ensino e ao atendimento remoto e tem outras que têm mais dificuldade. Então a gente precisa às vezes que o pai ou a mãe estejam junto para que a gente consiga interagir com a criança no ambiente virtual. Para algumas crianças, é recomendado que voltem ao atendimento presencial. Existem colegas que já voltaram justamente pelas grandes dificuldades do atendimento on-line de interação com essas crianças.
Como está ocorrendo a terapia presencial em casos essenciais?
Com todos os cuidados possíveis. Alguns colegas já estão voltando para os consultórios justamente por estarem preocupados com os prejuízos que a falta do atendimento presencial pode trazer para a criança. Eu soube que eles estão fazendo caixas de brinquedos para cada criança, para que uma não tenha acesso aos brinquedos da outra. Sempre higienizando, passando álcool em gel em tudo e com o uso da proteção face shield. E, em alguns casos, com a máscara transparente para que a criança consiga ver o nosso rosto. Algumas das crianças com espectro já estão conseguindo usar máscara e conseguem entender que é um novo momento. Porém, algumas não. Então, temos que avaliar cada caso, se conseguimos ou não realizar o atendimento presencial nesse momento. Alguns pais conseguiram fazer com que o filho usasse máscara porque colocaram algum personagem do seu desenho favorito na estampa do material. No entanto, nós conseguimos fazer com que as crianças autistas não fossem obrigadas a andar de máscara, porque isso pode causar uma ansiedade maior nelas.
Às vezes a gente não precisa atender presencialmente as crianças, mas eu penso que é interessante continuar auxiliando os pais, mesmo que remotamente, para que eles possam auxiliar os seus filhos. Eu venho trabalhando remotamente com os pais, então fazemos uma parceria, conversamos sobre aspectos da rotina, do dia a dia em casa.
Pensando no pós-pandemia, no retorno à socialização e às escolas, como esse processo poderá ocorrer de maneira saudável?
A gente nunca viveu uma situação como essa antes, então é complicado responder essa pergunta. Porém, eu penso que os professores e as escolas vão precisar de um tempo para readaptação, para que as crianças possam voltar a se conhecer. Eu acredito que os professores têm que deixar que as crianças brinquem bastante e que favoreçam esse reencontro delas – tentando manter os protocolos de segurança exigidos para a volta -, porque elas aprendem muito entre si. O grande prejuízo para as crianças é no âmbito das relações interpessoais: mesmo uma criança com autismo que não tenha uma troca maior com outra criança ainda assim precisa do convívio escolar, porque, para ela, muitas vezes é a única representação de um convívio em sociedade.
FOTO DE CAPA: Julyane Galvão/Governo do Maranhão.
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