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Crescer dentro do espectro do autismo não foi muito fácil. Desde que consigo me lembrar, eu tinha certas dificuldades, que nem eu nem meus pais entendíamos. Meu diagnóstico de TEA só veio esse ano, em 2019, aos 20 anos de idade. Depois disso, tudo mudou: pude entender por que tinha tanta sensibilidade com as minhas roupas, tantos rituais e manias, tanta ansiedade e tanta solidão.
Eu já não me lembro do tempo em que era apenas um bebê. Apesar disso, tenho como relembrar essa época: vídeos antigos. Minha família por parte de pai tinha o privilégio de ter uma filmadora e foi muito gentil em captar meus primeiros momentos de vida.
É muito evidente nesses vídeos que eu não gostava nada de abraços. Ao estar no colo de um adulto, tinha a repulsa ao abraço e a beijos. Falta de emoção? Nada disso! O nome disso é sensibilidade sensorial, que afeta muitas pessoas com autismo. Desde evitar toques intensos a não deixar minha mãe pôr enfeites no meu cabelo: os primeiros traços já se manifestavam.
Conforme fui crescendo, isso ficou mais evidente: manga com elástico? Nem pensar! Costura da meia? Sai pra lá! Cabelo solto? Não pode encostar no pescoço! Etiqueta? Arranca logo! Certas texturas? Não encostem em mim! Roupa íntima e biquíni? Tem que comprar maior! Sujar as mãos? NÃO! Tinha ocasiões em que não conseguia nem encostar nos coleguinhas de sala.
Não apenas essa característica norteava meus primeiros anos de vida: eu estava desenvolvendo intensos interesses em determinados assuntos. Conforme crescia, tive vários deles. O primeiro de todos, além de jogar video game, era o de ver vídeos de buracos negros. Via um após o outro e sabia até escrever buraco negro em inglês. Aprendi justamente para pesquisar no site de vídeos que estava começando a ficar popular na internet: o YouTube. Polvos, camuflagem e mimetismo, vídeos de tubarão, show de patinação no gelo da Disney, Cirque du Soleil…minha lista de interesses ao longo da infância foi extensa. Lembro de, em 2011, passar todo o meu tempo livre assistindo e reassistindo aos mesmos vídeos do show Disney on Ice. Eu sabia o nome dos patinadores, dos shows, as nacionalidades e idades de cada um. A pesquisa não era pouca! O mesmo aconteceu com o Cirque du Soleil. Eu sentia uma vontade absurda de saber os nomes dos artistas, os nomes das músicas…eu tinha várias músicas no celular. Passava os recreios sozinha as ouvindo e sonhando com o show.
Essa história de ficar sozinha nem sempre ocorreu. Felizmente, após a creche, fui para uma escola muito pequena e com poucas crianças. Assim como eu, elas gostavam de assistir a desenhos e dos filmes que eu gostava. Eu amava correr. Não conseguia ficar parada. Estava sempre suada. Eu tive muitos amigos nessa época. Às vezes, me passava como tímida, mas não se engane: em sala de aula eu era a palhaça da turma. A imitadora de falas de filmes oficial e a menina que, em meio ao silêncio de uma aula na qual a professora escrevia no quadro e os alunos copiavam, gritava uma frase aleatória que ouviu em algum momento da vida, e as crianças caíam na gargalhada. Diferente das outras meninas, eu não ligava para roupas e maquiagem. Eu só queria correr e me divertir. Participava das brincadeiras, mas, era só alguém sugerir algo diferente que eu me recusava a brincar. Eu tinha que ter controle sobre tudo ou não participava. Era muito mandona. Felizmente, como eu era uma espécie de estrela na minha turma, as crianças me chamavam para voltar à brincadeira e mudavam para o que era antes. Sem estresse. O único estresse que eu tinha era quando, às vezes, alguns dos que eu chamava de amigos se aproveitavam da minha ingenuidade, como quando me fizeram sentar sozinha durante o dia, sendo que era meu dia de sentar com uma amiga. Fora isso, só o barulho da turma, em que as crianças falavam todas ao mesmo tempo e eu não conseguia processar isso e tinha que tapar os ouvidos. Eu até brincava de tapar e destampar os ouvidos várias vezes para brincar com o som. Eu tinha muitas brincadeiras baseadas nos sentidos e, mesmo tendo muita imaginação para brincar e imitar perfeitamente cenas de filmes e desenhos com os brinquedos, me pegava arrumando tudo e ficando apenas olhando por um período prolongado de tempo, ou levantando e abaixando o braço de uma boneca pela sensação, ou girando a roda dos meus carrinhos só para ouvir o barulho e passando-as na minha pele para sentir a sensação. Eu tinha certas manias, como ter que dizer “cozinha” toda vez que entrava na cozinha e ter que entrar primeiro com o pé direito, pois levava muito a sério a expressão “começar com o pé direito”. Tinha muitos problemas com expressões. Minha mãe me pedia para dar um pulinho na casa da vizinha e eu, ao chegar lá, dava um pulo antes de bater na porta. Meu pai dizia que tinha feito a barba e eu não entendia que fazer a barba significa, na verdade, DESfazer a barba. Ou ele dizia que tinha passado a noite pegando no pé da minha mãe e eu achava aquilo nojento porque levava ao pé da letra.
As coisas não foram sempre assim. Em 2008, eu mudei de colégio. Eu já me sentia diferente por notar que as outras crianças não tinham os mesmos problemas com toque. Lembro que, no primeiro dia de aula, eu fui sentar sozinha na hora do lanche. As outras meninas me chamaram para sentar com elas, e eu me livrei de ficar sozinha naquele ano. Amizade comigo é assim. Tenho muito a agradecer àqueles que tomam a iniciativa, porque eu mesma nunca soube me aproximar de alguém e fazer uma nova amizade. O único bullying que cheguei a sofrer foi do próprio filho do
diretor. Nessa escola, eu fiz uma amiga, que me ajudava a saber o que vestir e gostava de fofocar. Essa parte eu não entendia mesmo. Não estava nem aí para a vida dos outros. Eu ainda só queria correr e minha timidez estava piorando.
Em 2009, eu mudei de escola mais uma vez. MAIS UMA VEZ. A coisa piorou e muito: eu era obcecada por jogos de computador e meu tempo livre era todo dedicado a um joguinho chamado Grand Chase. Uma menina, que havia estudado comigo na primeira escola, estudava na sala ao lado. Tentei andar com ela no início, mas ela só falava de meninos e essas coisas que eu nunca entendi. Eu continuava a mesma de antes. Só queria saber de correr e jogar. A amizade não deu mais certo e nos separamos. Foi aí que conheci meu novo amigo, que, junto a um antigo amigo que já havia estudado comigo e agora estava nessa nova escola também, formamos um trio de amizade, no qual eu era a única menina. Nós falávamos praticamente só de jogos e corríamos o recreio todo. Eu lembro que gostava de fazer a mesma pergunta várias vezes para o meu amigo, mesmo já sabendo a resposta. Eu sempre fui muito repetitiva.
Depois desse ano marcado por uma nova amizade, pelo bullying (as crianças não aceitavam o diferente e implicavam comigo por eu só andar com garotos. Me chamavam de nomes que prefiro nem comentar), e também por uma dificuldade imensa de me expressar para além do assunto “jogos” e de iniciar conversas, mudei, mais uma vez, de escola. Dessa vez, era uma escola bem maior. Tudo estava diferente. Os poucos que tentavam me chamar para me fazer companhia logo desistiam porque eu não falava nada. Não havia ninguém naquele ambiente que tivesse os mesmos interesses que eu tinha na mesma intensidade. No início, eu passava os recreios com o inspetor, com medo de ir para a multidão. Eu não gostava nada de lugares cheios e barulhentos. Depois, eu passei a ficar sozinha mesmo. Eu detestava os recreios e todos me achavam estranha. Eu me isolava muito. Meus pais tentavam forçar minha socialização e isso era muito ruim para mim. Não sabiam o que fazer para me ajudar. Eu chorava muito e estava quase sempre sozinha, ouvindo várias vezes as mesmas músicas, assistindo várias vezes aos mesmo vídeos ou lendo na biblioteca. Eu não gostava nada de ir para a escola e não sabia contar para a minha mãe como havia sido o meu dia. É uma dificuldade que sempre tive: contar relatos do passado. Somente agora estou melhorando nisso. Eu tinha 12 anos e ainda gostava dos meus brinquedos, dos mesmos desenhos (tinha uma obsessão pelos desenhos do Cartoon Network e sabia os nomes de todos os episódios e assistia em inglês na internet bem antes de estrearem aqui) e de correr. Até bronca por estar com o uniforma todo torto e abarrotado de tanto que eu tinha corrido eu levei!
No ano seguinte, fiz uma amiga, que hoje chamo de minha best. Não tínhamos tanto em comum, mas ela entendia minhas esquisitices e ouvia música comigo durante o recreio e jogava cartas. Eu gravava vídeos com ela no meu celular para chegar em casa e mostrar para minha mãe: “olha! Eu tenho uma amiga!”. Ela me pedia o tempo todo para ver minha amiga, e eu tinha que levar provas para casa. Eu amo a minha amiga!
Infelizmente, tudo que é bom dura pouco, e eu tive que me transferir de escola. Fui parar na turma dos bagunceiros. Não gosto nem de lembrar de todo o bullying que sofri por ser diferente. Eu consegui fazer uma amiga que também era quieta e estudiosa. Eu gostava de passar os recreios ouvindo as músicas do Cirque du Soleil e até pedi para minha mãe para fazer ginástica olímpica para um dia entrar para o circo (não deu nada certo…fora de forma). Eu tinha um tecladinho em casa e gostava de tocá-lo. Tinha o desejo de fazer curso de piano também, mas não tínhamos dinheiro.
Lá para o final do fundamental, assim como no ensino médio, a solidão tomava conta de mim e eu pensava em morte o tempo todo. Tinha problemas de auto agressão, não suportava barulho e passava os intervalos andando em círculos pelo pátio, ou andando de um lado para o outro. O bullying ainda existia e eu não me sentia parte da minha própria turma. Às vezes, passava os recreios sozinha na sala e fazia desenhos no quadro ou assoviava cantigas infantis. Eu gostava de ficar sozinha porque era muito difícil estar com alguém da minha idade. No terceirão, eu não participei de nenhum evento e não fui à minha própria festa de formatura. Eu não suportava festas. Da última vez que gostei de uma, eu ainda podia brincar de correr bem longe da multidão e da música alta.
Hoje, estou na faculdade. Duas tentativas de suicídio depois, diversas crises de choro e ansiedade, hoje tenho dois amigos maravilhosos que me aceitam como sou, consigo, algumas poucas vezes, tirar dúvidas com os professores e apresentar trabalhos em voz alta, coisa que até o primeiro período não conseguia fazer (cheguei a travar em uma apresentação de trabalho valendo nota e passar o dia todo chorando por causa disso). Eu já tinha ido a consultas com psiquiatras e psicólogos desde os 15/16 anos, mas ninguém me dizia o que eu tenho. Foi só esse ano, depois de começar a me tratar com uma outra psiquiatra (a segunda) e outra psicóloga (a terceira), que recebi, finalmente, uma explicação para todas as minhas dificuldades e peculiaridades: TEA.
Resumidamente, desde uma criança que não sorria para as fotos, não gostava de abraços, tinha uma porção de tiques e manias, além de interesses restritos, a uma universitária que tira excelentes notas, tem amigos, apresenta trabalhos e conseguiu, pela primeira vez, comprar roupa sem a mãe, a minha história é de muita evolução. Hoje consigo até soltar o cabelo, abotoar meus próprios botões e amarrar meus próprios cadarços!
Ainda sou muito dependente, tenho dificuldade com expressões, metáforas e metonímias e de me localizar ou seguir instruções longas, mas,
certamente,
não sou a mesma de antes.
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