segunda-feira, 11 de agosto de 2014

PNE's e sexualidade II (continuação)

Mito 3. Pessoas com deficiência são pouco atraentes, indesejáveis e incapazes de conquistar um parceiro amoroso e manter um vínculo estável de relacionamento amoroso e sexual.

As mensagens ideológicas relacionadas ao sexo divulgam-no como um direito exclusivo das pessoas jovens e bonitas. Os padrões definidores de normalidade sexual impõem um sexo que envolve protagonistas de corpo perfeito, magro, esbelto, que tenham boa saúde, etc, mas esses padrões existem para todos nós e prejudicam a todos. A possibilidade encontrar um parceiro sexual e amoroso parece depender de se corresponder a modelos de estética e de desempenho, mas isso não impede que pessoas com deficiência possam se relacionar amorosamente de modo satisfatório e gratificante (WEREBE, 1984; MOURA, 1992; AMARAL, 1995; SALIMENE, 1995; PINEL, 1999; ANDERSON, 2000; BAER, 2003; SHAKESPEARE, 2003; MAIA, 2006, SCHWIER; HINGSBURGER, 2007).
Para muitas pessoas a deficiência se sobrepõe à questão sexual, como se o corpo deficiente aparecesse antes do corpo sexual e inviabilizasse a satisfação da sexualidade própria. Em algumas situações a pessoa com deficiência precisa de suportes, como usar aparelhos e ou realizar procedimentos de esvaziamento de bexiga e esfíncter, para viver com certa independência no cotidiano ou mesmo para vivenciar um momento de intimidade e contato físico e sexual. Para Kaufman, Silverberg e Odette (2003) e Puhlmann (2000), o fato de você ter uma parte do corpo não funcional, de você precisar de algum tipo de auxílio e ajuda em função de sua deficiência antes de dar e receber prazer pode torná-lo degradante e pouco erótico aos demais, mas não impede os vínculos amorosos e sexuais.
Dificuldades de relacionamento amoroso existem para deficientes e não deficientes. A deficiência pode representar um estigma que prejudica a imagem para o (a) outro (a), mas não impede a pessoa de encontrar alguém para amar e ser amado. Dificuldades da vida marital existem para deficientes e não deficientes. Não há provas de que deficientes separam e rompem relacionamentos com mais frequencia do que não-deficientes (VASH, 1988; MOURA, 1992; BAER, 2003; KAUFMAN, SILVERBERG; ODETTE, 2003; MAIA, 2006). Essa crença baseia-se num preconceito de que pessoas com deficiências não poderiam ser desejáveis aos demais e que se relacionar amorosamente com um deficiente seria algo deplorável e digno de piedade.
Se toda a sociedade alimenta um estigma de que alguém com deficiência é merecedor de piedade, a própria pessoa com deficiência é tentada a incorporar esse preconceito em si mesmo, o que aumenta seus sentimentos de desvalia (WEREBE, 1984; PINEL, 1999; PUHLMANN, 2000; BAER, 2003; KAUFMAN, SILVERBERG; ODETTE, 2003; MAIA, 2006; SILVA, 2006; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007). Diante desses sentimentos de inadequação esquece-se que a pessoa é, antes de tudo, um ser humano e que a deficiência é incorporada a identidade pessoal. Não se ama a deficiência, mas o sujeito com a deficiência. Os padrões sociais de normalidade referem-se a ser saudável (e perfeito); muitas pessoas incorporam o medo da deficiência porque acham que uma vida com deficiência não vale a pena ser vivida.
São comuns os sentimentos de pena a todos aqueles que não gozam de boa saúde ou que não correspondem a uma condição normativa incentivando os olhares discriminativos sobre aqueles que têm uma diferença (MOURA, 1992; BLACKBURN, 2002; KAUFMAN, SILVERBERG. ODETTE, 2003). Se há uma crença social que atribui às pessoas com deficiências infelicidade, incapacidade, desvalia, as opções de expressão da sexualidade e da vida sexual ficam prejudicadas e muitas pessoas com deficiência acabam não se envolvendo em relações sexuais e amorosas ou não conseguindo que essas relações sejam satisfatórias. Além disso, Maia (2009a) lembra que, embora haja um pressuposto social do que se é desejável amar e de quais seriam os estereótipos físicos que contam significativamente nos processos de conquista, não se pode delimitar a possibilidade de enamoramento a tais padrões rígidos. Muitas vezes, o amor se estabelece no cotidiano das relações interpessoais a partir de motivações diversas e, assim, são as características psicológicas individuais do sujeito que consolidam uma relação de cumplicidade amorosa e não as características exteriores, como, por exemplo, a cor da pele, o tipo de cabelo, a massa corporal ou também o corpo perfeito.
Os membros familiares também são atingidos pelos preconceitos sociais que tangem as pessoas com deficiências e se tornam importantes mediadores para ajudar o membro com deficiência a enfrentar os desafios e dificuldades (SORRENTINO, 1990; SCHOR, 2005; SADE; CHACON, 2008; MAIA, 2009b). Nesse sentido, as próprias famílias das pessoas com deficiência costumam questionar se é possível alguém não-deficiente se apaixonar e viver uma relação amorosa e sexual com o deficiente e espera – quando compreende seu(ua) filho(a) como sexuado, que ele(a) encontre um par amoroso igualmente deficiente como se ela também denegrisse a representação de uma vida saudável. Por outro lado, a família pode desejar que seus(as) filhos(as) com deficiência namorem e se casem com não-deficientes visando aproximá-los de uma condição normal. Em todos os casos, o preconceito fica evidente: toda a estrutura familiar é estigmatizada pela deficiência (OMOTE, 1999), tal como se refere Goffman (1982) ao estigma de cortesia.
Autores como Werebe (1984), Vash (1988), Sorrentino, 1990; Moura (1992), Amaral (1995), Blackburn (2002), Maia (2006; 2009b) e Schwier e Hingsburger (2007) compartilham do argumento de que a família também tem representações sobre a sexualidade do deficiente e tanto pode facilitar os relacionamentos interpessoais incentivando a independência e a socialização do membro familiar deficiente, como também pode prejudicá-lo, superprotegendo-o, isolando-o e, portanto, negando e ele possibilidades de viver vínculos afetivos diversos, o que alimenta ainda mais os preconceitos sociais já existentes.

Mito 4. Pessoas com deficiência não conseguem usufruir o sexo normal que é espontâneo e envolve a penetração seguida de orgasmo, por isso, são pessoas que têm sempre disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à excitação e ao orgasmo.

A deficiência pode até comprometer alguma fase da resposta sexual, mas isso não impede a pessoa de ter sexualidade e de vivê-la prazerosamente (SALIMENE, 1995; PINEL, 1999; PUHLMANN, 2000; BAER, 2003; KAUFMAN; SILVERBERG; ODETTE, 2003; MAIA, 2006). Além disso, na cultura ocidental, que herda as regras repressivas da religião judaico-cristã, culpando o sexo que visa apenas o prazer e não a reprodução e condenando atos como a masturbação, as relações homossexuais, o orgasmo e o desejo acentuado de mulheres, etc, as disfunções sexuais acabam sendo comuns justamente por conta da intensa repressão sexual que, de diversas formas, ainda hoje persiste (WEREBE, 1984; SALIMENE, 1995; PINEL, 1999).
As disfunções femininas, como a falta de lubrificação vaginal e as masculinas, como a disfunção erétil e, em ambos os sexos, a anorgasmia e inibição do desejo, em geral, podem representar sentimentos de culpa relacionados ao sexo-prazer, uma história repressiva e moralista em relação à sexualidade, à afetividade e à vida sexual que dificultam o aprendizado de sensações satisfatórias em relação ao corpo, independentemente de se tratar ou não de uma pessoa com deficiência.
Na mesma direção também há uma crença no sexo ideal. Para Kaufman, Silverberg e Odette (2003), a regra idealizada de um sexo funcional e normal pode ser compreendida a partir da observação de diversos filmes: mulheres e homens sempre disponíveis para o sexo, beijos e penetração de todos os tipos, diferentes posições e um orgasmo simultâneo. Shakespeare (2003) argumenta que a crença na sexualidade normal tem como foco a genitalidade e as funções sexuais. Além de nenhuma dificuldade aparecer na relação sexual normativa e idealizada, também se prioriza a penetração e o orgasmo. Baer (2003) comenta que na expressão do sexo normal e prazeroso há a necessidade de penetração vaginal e orgasmos. A prática sexual que não é completa com esses atributos é considerada menor, como o sexo oral ou a masturbação, por exemplo, mas, segundo os autores, estudos mostram que pessoas de todo tipo se masturbam e se satisfazem com essa prática sexual.
Muitas pessoas cultivam mensagens negativas sobre o sexo sem penetração ou falta de orgasmo. Isso tanto alimenta o sentimento de compaixão como o sentimento de inadequação daqueles que por necessidade ou desejo, não podem ou escolhem não ter relações sexuais ou daqueles que precisam satisfazer-se por meio da masturbação pela dificuldade em viabilizar relações sexuais ou pela dificuldade de se relacionar sexualmente com penetração, a partir da idéia de que vive um sexo incompleto e/ou infeliz.
Outro conceito normativo comum é a idéia de que sexo é uma atividade espontânea, algo que vem naturalmente como o amor verdadeiro. Isso também afeta a todos que buscam a satisfação sexual a partir modelos idealizados e midiáticos, por exemplo, e temos dificuldades em reconhecer no cotidiano que o sexo é inclui um aprendizado (PUHLMANN, 2000; SHAKESPEARE, 2003). No caso de pessoas com deficiência que, muitas vezes, para as relações sexuais, precisam realizar o planejamento e as adequações do ambiente e isso se torna um problema ainda maior porque nessas condições o sexo não será nunca espontâneo; isso, no entanto, não inviabiliza a possibilidade de sentimentos de prazer e satisfação sexual.
Sexualidade, portanto, é social e cultural. Aprende-se, em diferentes culturas, o sentido do prazer, do desejo, do erotismo humano e damos significados diferentes para o que se define como amor, fidelidade, casamento, paquera, etc. Em todas essas situações do erotismo humano, reproduzem as concepções sociais internalizadas. Costa (1998), por exemplo, lembra que o amor romântico é uma invenção cultural que nada tem de natural e universal, nem é um sentimento incontrolável e nem mesmo pode ser relacionado à garantia de felicidade eterna. A partir da cultura e da educação há uma construção sobre a escolha de nossos objetos amorosos e não é verdadeiro o fato de que todos são alvos desejáveis, embora não percebamos isso conscientemente. Nesse sentido, o amor, assim como o sexo e o desejo são influenciados pelas concepções sociais de normalidade que destroem qualquer possibilidade de se desejar espontaneamente. Diz o autor:
Sentimo-nos atraídos sexual e afetivamente por certas pessoas, mas raras vezes essa atração contraria os gostos ou preconceitos de classe, "raça", religião ou posição econômico-social que limitam o rol dos que "merecem ser amados" (...). O amor é seletivo como qualquer outra emoção presente em códigos de interação e vinculação interpessoais (COSTA, 1998, p.17).
A própria sociedade dificulta a possibilidade de pessoas com deficiência de exercerem a sexualidade porque não disponibiliza igualmente para todas as oportunidades de privacidade que se torna uma barreira para muitas pessoas com deficiência para exercer uma sexualidade positiva, o que é ainda mais evidente em instituições onde o controle e a vigilância não permitem a privacidade e o fato dela não existir se soma à concepção de que o sexo vai ser inexistente, perigoso ou dificultoso para essas pessoas (WEREBE, 1984; PINEL, 1999; MAIA, 2006; SCHWIER; HINGSBURGER, 2007). A maioria das instituições nega aos seus alunos, clientes e residentes o direito de serem sexuais. Em internatos, as mensagens são claras: a expressão da sexualidade não é algo aceitável. Não se tranca a porta, não há nenhum momento de privacidade e os cuidadores tratam do sujeito como objeto. É comum tratá-los na 3ª pessoa, mesmo na presença deles, e controlar o que fazem (KAUFMAN, SILVERBERG; ODETTE, 2003). O diálogo é pouco e não se conhece, nem se procura ouvir, suas necessidades, desejos relacionados à vida como um todo e, principalmente, à sexualidade.
Segundo Kaufman, Silverberg e Odette (2003) há também no imaginário social uma idéia de que as coisas ruins só aconteceriam para pessoas ruins, como contrair uma doença grave, sofrer um acidente ou ter um sério problema, porque elas mereceriam Ocorre que acreditar nesse destino culposo é pouco produtivo para se lutar contra as adversidades da vida. No caso da vida sexual, se essa exige sofrimento e desgaste, acaba sendo justificada como um castigo merecido o que leva a sentimentos depressivos e comportamentos passivos, também em relação à expressão da sexualidade. Afastar a possibilidade de um sexo prazeroso acaba sendo uma crença incorporada pelo próprio sujeito com deficiência que acredita que ele não pode gozar de uma vida sexual e afetiva como os demais, porque não a merece.

(Continua...)

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