Por Parcilene Fernandes
Bacharel em Psicologia. Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.
Rain Man estreou em 1988. Nessa época, o
transtorno do autismo era pouco divulgado na mídia, o que fez com que o
personagem de Dustin Hoffman (Raymond) se transformasse em uma espécie
de referência no que tange aos sintomas desse transtorno. Algumas
pessoas (e a mídia em geral) associavam as características do personagem
ao transtorno, o que poderia produzir uma equivalência perigosa. O
filme foi extremamente relevante para a apresentação do autismo, mas
também contribuiu para provocar erros de interpretação, já que reduzia,
aos olhos do grande público, os sintomas desse transtorno à imagem do
personagem.
Raymond é o irmão mais
velho de Charles Babbit (Tom Cruise). Viveu grande parte de sua vida em
uma instituição para pessoas com transtornos mentais. A história
inicia-se com a morte do pai e a leitura do seu testamento. Enquanto
Charles ganhou apenas um velho carro e as roseiras da casa, Raymond foi
beneficiado com todos os recursos dos investimentos do pai.
Aos poucos descobrimos que essa família é totalmente desestruturada. A
mãe de Charles morreu quando ele tinha três anos e Raymond foi mandado
para a clínica, pois representava (segundo o pai) um perigo para o
irmão. Charles deixou de falar com o pai aos 17 anos depois de uma
tentativa fracassada em ser notado por ele. Assim, o distanciamento que
Raymond tem das pessoas parece ser um traço presente (em um dado nível)
em todos os membros de sua família.
Charles, que até então não se lembrava da existência do irmão, apenas
que um amigo imaginário cantava música para acalmá-lo quando tinha 3
anos, foi procurá-lo na clínica e tirou-o de lá sem o consentimento dos
médicos. Era a forma que ele havia encontrado de recuperar a herança.
O que ele não esperava era que Raymond,
mais do que repetir determinadas sentenças insistentemente, de gostar
de determinadas produtos, locais e programas de TV de forma obsessiva,
poderia ter fortes crises se vivenciasse mudanças bruscas em sua rotina
ou se fosse impelido a fazer algo que não quisesse.
Segundo o DSM IV,
as
características essenciais do Transtorno Autista são a presença de um
desenvolvimento acentuadamente anormal ou prejudicado na interação
social e comunicação e um repertório marcantemente restrito de
atividades e interesses. As manifestações do transtorno variam
imensamente, dependendo do nível de desenvolvimento e idade cronológica
do indivíduo [...]. Os indivíduos com Transtorno Autista têm padrões
restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e
atividades.
Uma das grandes
complexidades desse transtorno reside no entendimento das variações
dessas manifestações e a fase em que são identificadas. Quanto mais
tarde é feito o diagnóstico, mais difíceis são as possibilidades de
tratamento. No caso de Raymond, a questão ainda tem um diferencial, pois
ele também sofre da Síndrome de Savant. ParaTreffert (2009),
essa síndrome “é uma condição rara, em que pessoas com graves
deficiências mentais, incluindo o transtorno autista, possuem algum tipo
de talento ou habilidade extraordinária”.
Segundo pesquisas apresentadas em Treffert (2009), em cada 10 pessoas
autistas, uma tem habilidades notáveis em algum grau. Logo ter autismo
não implica ter a Síndrome de Savant. Há outras variações de
autismo, como é apresentado no DSM IV, em que “o prejuízo na comunicação
é marcante e persistente, afetando as habilidades tanto verbais quanto
não-verbais; podendo haver atraso ou falta total de desenvolvimento da
linguagem falada”.
Ter a Síndrome de Savant
também não implica ser autista. Segundo Treffert (2009), essa síndrome
pode ocorrer através de outras deficiências de desenvolvimento ou em
outros tipos de lesões do sistema nervoso central. Seja qual for a
habilidade apresentada pelo portador da síndrome, ela tem uma base
única: a memória. São habilidades intrinsicamente relacionadas à
capacidade surpreendente de memorização.
Apesar de a personagem Raymond Babbit ter ambos os transtornos, Kim Peek,
que foi a inspiração para os roteiristas desenvolverem o filme, não
tinha autismo, mas era mentalmente incapacitado, precisava do auxílio do
pai para realizar as tarefas mais básicas (como se vestir ou barbear),
apesar de ter uma capacidade de memorização extrema. Até a sua morte em
2009, aos 58 anos, Kim havia memorizado cerca de 12.000 livros
(inclusive a Bíblia). Mesmo sem compreender aquilo que memorizava, era
capaz de citar palavra por palavra o texto de cada um dos livros.
Ter que passar um tempo com o irmão fez Charles aprender mais sobre as
suas próprias fragilidades. Quando estavam em Las Vegas, ele usou as
habilidades de Raymond para ganhar no jogo de cartas, entendendo, apenas
posteriormente, o que aquela ação refletia, ou melhor, o tipo de homem
que ele se tornara. Essa proximidade com o irmão, principalmente, fez
com que ele trouxesse à tona passagens de sua infância, assim, ele pôde
perceber que aquela pessoa tão distante, que vivia em um mundo
particular e, aparentemente, inacessível, um dia foi seu protetor. O
“Rain Man” que dá título ao filme é a forma com que Charles, aos três
anos, se referia ao irmão, que, dentro de sua rotina de tarefas,
protegia-o da solidão.
(Continua)
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