Mais do que a herança, o que Charles
buscava ao fim da viagem que fez com Raymond, era recuperar sua família.
Buscava um afeto que Raymond não conseguia retribuir. Mas, como as
nuances do autismo ainda são complexas demais para o nosso entendimento,
talvez, em algum nível, na mente de Raymond essa proximidade provocou
alguma modificação. Mesmo que tal fato não seja expresso de uma forma
que, no momento, tenhamos condição de identificar.
O estudo da mente tem várias vertentes, que refletem nas mais diversas situações. Doenças como a Síndrome de Savant
podem contribuir para um melhor entendimento de como se dá o processo
de aprendizagem, mais especificamente a parte do processo relacionado à
memorização. Que diferenças estruturais existem nos cérebros dessas
pessoas? O que possibilita a execução de ações extraordinárias, como a
memorização de uma sinfonia de Beethoven ou de uma obra de Shakespeare?
Por que a execução de algo extraordinário é feita de forma tão fácil
enquanto ações simples, como amarrar o cadarço do sapato, não?
Para Treffert (2009),
nenhum
modelo da função cerebral, incluindo a memória, estará completo até que
se possa explicar e incorporar plenamente a condição rara, mas
espetacular, da Síndrome de Savant. Na última década, particularmente,
muito progresso tem sido feito para explicar esta justaposição
dissonante de capacidade e incapacidade, mas muitas perguntas continuam
sem resposta.
Para ele, as
inovações tecnológicas no campo da tomografia computadorizada e da
ressonância magnética serão cruciais nessas investigações. Pois, elas
fornecem imagens de alta resolução de toda a arquitetura do cérebro
(superfície e profundidade), o que permite uma inspeção detalhada da sua
estrutura. Treffert (2009) acrescenta ainda que “estudos das funções do
cérebro, tais como a tomografia por emissão de pósitrons (PET),
tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT – sigla da
expressão em inglês) ou a ressonância magnética funcional, são técnicas
muito mais informativas sobre a Síndrome de Savant e,
inclusive, do próprio autismo, uma vez que estas novas técnicas fornecem
informações sobre o cérebro em funcionamento, ao invés de simplesmente
visualizar a arquitetura do cérebro”.
O autismo colocou Raymond em um mundo à parte enquanto que a Síndrome de Savant
transformou-o em um prodígio no uso da memória. Em alguns estudos,
busca-se no reforço desses talentos, uma forma de inclusão social, já
que a pessoa passa a se sentir útil em um dado contexto. Uma dessas
pesquisas foi relatada em Treffert (2009):
Clark
(2001) desenvolveu um currículo de habilidade savant usando uma
combinação de estratégias bem-sucedidas e atualmente empregadas na
educação de crianças superdotadas (enriquecimento, aceleração e
orientação) e educação de autistas (suportes visuais e histórias
sociais) em uma tentativa de canalizar e aplicar, de forma útil, as
habilidades, muitas vezes pouco funcionais e obsessivas, de um portador
da Síndrome de Savant. Este currículo especial foi muito bem sucedido na
aplicação funcional das habilidades Savant e produziu uma redução
global do nível dos comportamentos autistas em muitos aspectos.
Melhorias no comportamento, nas habilidades sociais e acadêmicas foram
observadas, juntamente com o ganho nas habilidades de comunicação em
dados contextos.
A expressão
“fazer do mundo um lugar melhor”, nesse contexto, deixa seu sentido
macro e volta-se para o interior do indivíduo. Talvez possamos usar a
ciência para construir pontes entre os universos que compõem a natureza
de cada um de nós.
Referências:
DSM-IV. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Disponível em: http://www.psicologia.pt/instrumentos/dsm_cid/dsm.php
TREFFERT, D. A. The savant syndrome: An extraordinary condition. A synopsis: Past, present, future. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences 364 (1522): 1351–7, 2009. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2677584/
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