Alterações genéticas em nervos do sistema nervoso periférico podem explicar as alterações sensoriais comuns em pacientes com o transtorno, indica estudo norte-americano
Por Isabela de Oliveira para o uai.com.br
A última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) incluiu as anomalias sensoriais do autismo como algumas das principais dimensões da doença (foto: SXC.hu)
Até então, acreditava-se que desordens do espectro autista (DEA) eram, basicamente, problemas cerebrais normalmente manifestados por comportamentos repetitivos e deficiências nas habilidades de interação social. No entanto, a maioria das pessoas com DEA também tem os sentidos táteis alterados, sendo hipersensíveis até mesmo a toques suaves e texturas. O aspecto é tão relevante para a compreensão da doença que a última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) incluiu as anomalias sensoriais do autismo como algumas das principais dimensões da doença.
“A hipersensibilidade é, realmente, impressionante. Para se ter uma ideia, no caso de minha filha e de outros autistas, a primeira coisa que precisamos fazer após comprar uma roupa nova é remover a etiqueta. Eles não suportam tocar naquilo, têm uma sensibilidade absurda. Por isso, em locais cheios, ficam mais estressados: percebem a confusão com mais intensidade e assimilam tudo isso de uma vez só, simultaneamente”, conta o médico José Carlos Pitangueira, diretor executivo do Instituto Priorit, um centro especializado em tratamento de DEA no Rio de Janeiro.
A sensação de toque é recebida inicialmente pelo sistema nervoso periférico, a partir de receptores na superfície da pele. Só depois, viaja para o sistema nervoso central. Enquanto muitos pesquisadores do autismo concentram seus estudos no destino final da viagem — o cérebro —, David Ginty preferiu entender melhor a primeira estação da jornada sensorial. Para isso, a equipe liderada por ele inseriu, nos nervos periféricos de ratos, as mutações que silenciam os genes Mecp2 e Gabrb3, cujas anomalias estão associados com DEA.
Ratos que nasceram com os genes mutantes se mostraram mais sensíveis a toques sutis: um sopro leve no pelo das costas, por exemplo, era o suficiente para gerar uma perturbação exagerada em relação aos animais sem o defeito. Além disso, os ratinhos com o problema genético eram incapazes de distinguir texturas macias e ásperas dos brinquedos, ao contrário dos bichos sem as variantes. Embora as mutações não estivessem presentes no cérebro, apenas no nervo periférico, as cobaias diferenciadas eram mais ansiosas e menos sociais, tratos normalmente atribuídos à função do sistema nervoso central.
Por exemplo, quando tinham a opção de passar tempo com outro rato ou um copo vazio, os animaizinhos mutantes optavam pela companhia inanimada. Testes de ansiedade também revelaram diferenças: enquanto ratos normais exploravam com curiosidade áreas abertas, se aventurando até mesmo em plataformas elevadas sem proteção, os roedores com os genes silenciados preferiam as regiões protegidas.
Fator tempo
Os autores, por fim, observaram o comportamento de ratos que tiveram os genes Mecp2 e Gabrb3 depois de adultos. Nesse caso, as cobaias passaram a apresentar hipersensibilidade ao toque. No entanto, ao contrário de ratinhos que haviam nascido com os genes silenciados pelas mutações, elas não exibiram o comportamento anormal. Diante disso, os autores imaginaram que o comportamento antissocial poderia ter sido condicionado pelo período mais longo que os animais que nasceram com a mutação foram obrigados a conviver com o desconforto sensorial. Durante o desenvolvimento, o toque media a interação com o ambiente e outros indivíduos.
Portanto, se um rato achar que o contato físico com outro é desconfortável, ele passará a evitar o contato no futuro. O mesmo vale para o ambiente: uma vez considerado abrasivo, tenderá a ser evitado pelo animal. Além disso, ao longo das pesquisas, os autores perceberam que os nervos periféricos dos ratos mutantes apresentavam níveis mais baixos de um receptor de ácido gama-aminobutírico (Gaba), que é o principal neurotransmissor inibitório do cérebro, sendo responsável por moderar a intensidade das sensações.
“A partir disso, acreditamos que os ratos com essas mutações genéticas associadas ao autismo têm um grande defeito no ‘interruptor de volume’ em seus neurônios sensoriais periféricos”, diz Lauren Orefice, principal autora da pesquisa e pós-doutoranda no laboratório de Ginty. Ou seja, no autismo, o volume da sensibilidade dos animais está ligado no máximo, fazendo com que eles sintam o toque em um nível exagerado. “Achamos que funciona da mesma maneira em humanos com DEA” Ginty acrescenta.
Tratamento
Os investigadores estão, agora, à procura de abordagens genéticas e farmacêuticas que possam regular a intensidade do volume para os níveis normais nos neurônios sensoriais periféricos. Uma opção seria encontrar uma droga que restitua a função do Gaba nas periferias do sistema nervoso. Presidente da Sociedade de Pediatria do Distrito Federal (SPDF), Christian Muller considera que a discussão sobre o comprometimento sensorial periférico precisa ser melhor analisada. Ele questiona, por exemplo, se os achados poderiam explicar, em humanos, outras formas de autismo.
“A grande dificuldade das pesquisas em autismo é que múltiplos genes estão envolvidos em sua causa e, como tal, dificultam a investigação e o tratamento. A conclusão desse estudo ainda não pode ser levada a todos casos de autismo, visto que se testou genes específicos, dentre os tantos envolvidos”, observa o também neuropediatra do Hospital Santa Lúcia. Mesmo assim, Muller frisa que as ressalvas não diminuem a contribuição do trabalho, considerado por ele “uma novidade no campo dos estudos sobre autismo”. “O grupo de autores e a revista publicada são muito respeitados cientificamente, o que aumenta a relevância do estudo”, certifica o neuropediatra.
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