Mesmo que mais de 45 milhões de brasileiros tenham declarado ter pelo menos um tipo de deficiência, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda é um desafio encontrar pessoas com deficiências dividindo o espaço de trabalho, os transportes públicos e até mesmo as escolas e universidades.
O tema engloba todas as faixas etárias, incluindo a infância. Nesse sentido, a Semana Mundial do Brincar (SMB) 2019 propõe a reflexão: “O brincar que abraça a diferença”. A frente número dois da mobilização anual em prol do brincar livre traz a crença da Aliança pela Infância de que as deficiências não saem da brincadeira e, inclusive, proporcionam novos aprendizados a crianças com e sem deficiência.
Uma das garantias presentes na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), aprovada em 2015 para assegurar e promover o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, é o direito a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, para que as pessoas possam “alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem”.
Apesar de estar prevista na lei, a inclusão é mais complexa do que realizar a matrícula e inserir a pessoa dentro da sala de aula. Mas o que, afinal, é necessário em termos de formação e preparação para uma escola receber uma criança com deficiência?
Formação de professores
Pamela Martins, especialista em educação inclusiva, explica que, além das falhas estruturais do nosso sistema de ensino, um dos pontos principais relacionados à presença de crianças com deficiências em salas de aula é a falta de preparação dos profissionais. “A inclusão é um processo que precisa acontecer em termos de método e capacitação profissional. Um dos primeiros passos é sensibilizar o professor e fortalecer sua autoconfiança. Ouvimos muitos relatos de insegurança desses profissionais, já que não recebem o preparo necessário na formação [inicial] para lidar com todas as novidades que ter um aluno com deficiência em sala de aula traz à sua dinâmica.”
Segundo a especialista, a sociedade ainda vive um modelo que se limita ao que a criança não pode fazer em vez de olhar e enaltecer suas potencialidades e, por isso, argumenta que ainda falta um longo caminho para superar o patamar da mera inserção da pessoa no ambiente escolar. “É da nossa cultura e do sistema tradicional de ensino não flexibilizar para as diferenças de cada um. É como se fôssemos formados em lote, ou seja, o tempo tem que ser tudo igual pra todo mundo: o tempo é o mesmo e as avaliações são as mesmas. Na verdade somos todos diferentes e, nesse sentido, a deficiência exige uma série de adaptações principalmente metodológicas.”
Graduada em educação inclusiva pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutora em educação inclusiva, Pamela, que atua na área há 13 anos, também trabalha com formação de professores. A vivência com profissionais de educação levou à percepção sobre a precarização da profissão docente. Por isso, a especialista ressalta que antes de julgar um professor, é preciso ter conhecimento da realidade de seu trabalho.
“Nós encontramos diferentes posturas quando trabalhamos com professores. Muitos deles realmente querem soluções e criam uma expectativa enorme quando chega uma equipe para falar de educação inclusiva. Mas precisamos ganhar sua confiança, levar histórias de sucesso e de fracasso, explicando que não existe uma fórmula. Cada aluno é único e vai depender da capacidade de observação de cada profissional sobre as necessidades desse aluno, o tratamento para com ele, sensibilidade, empatia e destreza de técnica. O professor precisa ser humano, empático e tomar decisões percebendo que a inclusão é uma necessidade, não somente uma garantia na lei. Ela precisa realmente acontecer porque o aluno é sua responsabilidade, mas também da escola e da comunidade. Esses profissionais precisam se sentir acolhidos e ver que não estão sozinhos nessa, porque ninguém pode negar o quanto é desafiador. Uma educação inclusiva eficiente envolve uma série de fatores, entre recursos materiais e principalmente recursos humanos.”
O que acontece na prática
Se o ‘mundo ideal’, como indica Pamela, é ter um time de professores formados para saber como integrar uma criança com deficiência no grupo, espaços físicos e equipe pedagógica preparada para recebê-la, sala de recursos para ser usada no contraturno e um profissional especializado na área de educação inclusiva para pensar na adaptação curricular junto com o professor regente, não é isso o que acontece no dia a dia das escolas no Brasil.
Não contar com essas ferramentas não impede, entretanto, que escolas da rede pública e privada trabalhem com esses alunos. É o caso do Jardim de Infância Tia Lucy, localizado no Clube Pinheiros, em São Paulo. Especializada em Educação Infantil, a escola já recebeu crianças com diferentes tipos de deficiência, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), paralisia cerebral, Síndrome de Down, entre outros.
Regina Delduque, diretora da Educação Infantil, explica que em primeiro lugar a escola precisa de fato acreditar que o ambiente escolar precisa ser para todos. “Uma escola que faz inclusão meramente porque é obrigada por lei não está fazendo inclusão nenhuma na verdade.”
Em um segundo momento, ressalta a importância de estabelecer uma ligação entre três figuras com as quais a criança se relaciona: escola, família e terapeutas como fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, neurologistas, entre outros profissionais da saúde. “São esses profissionais que vão nos ajudar a entender o que é importante para a criança com determinada necessidade, quais estímulos ela precisa e nos mostrar quais são as adaptações necessárias para recebê-la”, explica a diretora.
Sueli Nogueira, professora do Infantil 5 da Tia Lucy, já contou com alguns alunos com deficiência em suas turmas. A pedagoga conta que, nos casos em que a família tem ciência sobre a deficiência e informa o fato durante o processo de matrícula ou reunião de pais, é estabelecida uma conversa com a diretora e coordenadora pedagógica no sentido de entender quais são as necessidades daquela criança apontadas pela família e o que pode ser feito de forma mais imediata para recebê-la no início das aulas.
“Antes de 2015 com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LBI), recebemos a primeira criança com TEA severo na escola. Nessa ocasião, a minha diretora indicou algumas leituras sobre o tema. Como essa criança já estava na escola, foi possível acompanhar o histórico e trocar experiências com a professora do ano anterior. Foi uma experiência desafiadora porque era difícil fazer com que ela interagisse com outras crianças, por exemplo. Por isso, eu e a professora auxiliar nos empenhamos em realizar um trabalho de socialização a partir de histórias, brincadeiras, jogos e rodas de conversa, explicando para o grupo que aquela criança tinha um tempo diferente para aprender,” afirma Sueli.
O lúdico e as deficiências
As profissionais entrevistadas nesta reportagem concordam com a crença da Aliança pela Infância de que o brincar é o principal território de descobertas, explorações e desenvolvimento durante a infância. É na brincadeira que as crianças mais aprendem, se desenvolvem e se relacionam com o mundo a sua volta.
Pamela enxerga o lúdico como uma ferramenta de desenvolvimento cognitivo, indo além da socialização entre os brincantes. “O primeiro passo de tentar acolher e inserir o aluno independente de suas limitações é uma iniciativa muito democrática do espaço escolar. A negativa e a afirmação de ‘tal pessoa é deficiente e por isso não brinca’ é muito grave. Um jargão que repetimos muito na educação inclusiva é ‘ter um olhar para as potencialidades e não para a limitação’. Isso precisa ser um princípio norteador das práticas da escola.”
Segundo a especialista, pequenas atitudes de inclusão dão origem a outras, uma vez que se o grupo aprende a lidar com a diferença, o ambiente tende a ser muito mais inclusivo, pois haverá iniciativas das próprias crianças em ajudar e não deixar os colegas sozinhos. “Quando a gente trabalha com criança, vemos isso acontecendo na prática. Elas são muito solidárias. Eu acredito que essa convivência é sempre positiva. Costumo dizer que a criança é sim desprovida de preconceito até o adulto colocar na cabeça dela. Então quanto antes ela tiver contato com a diversidade e diferença, mais ela tem a ganhar.”
Regina Delduque usa sua experiência como diretora de escola para contar que um olhar atento do professor regente ajuda a tratar sobre o tema das diferenças desde cedo com os alunos. “Quando as crianças são muito pequenas, não há uma grande percepção sobre as diferenças. Mas conforme vão crescendo e amadurecendo, as professoras usam de vários recursos, como a literatura, para explicar que somos todos diferentes.”
A diretora ecoa as palavras de Pamela ao afirmar que a convivência com crianças com deficiência produz benefícios múltiplos. Se de um lado essa pessoa vai sendo estimulada e se desenvolvendo dentro das suas possibilidades, do outro o grupo de colegas aprimora um olhar de atenção a necessidades diversas. Nessa lógica, é na brincadeira que as diferenças são percebidas e respeitadas. “Eu acredito fortemente que na Educação Infantil a criança desenvolve todas as habilidades necessárias para a vida enquanto está brincando. Ela assimila muito melhor o que você quer que ela aprenda através da brincadeira, pois é nesses momentos que vai aprender a esperar, a ouvir e enfrentar desafios.”
Atuando como professora há mais de 20 anos, Sueli também reafirma sua crença no ato de brincar, momento em que as crianças conseguem se manifestar e se expressar da forma mais plena. “É através do jogo simbólico que o grupo faz com que aquela criança com deficiência participe desempenhando um papel na brincadeira, por exemplo”.
No caso da criança com TEA, a professora afirma que toda a aprendizagem conquistada foi a partir de atividades lúdicas. “Nós usávamos muito os brinquedos e livros que ela gostava, além de fotos e tintas, que ela adorava. Também percebíamos que não permitia a aproximação de todos os colegas. Mas em atividades mais agitadas, como em momentos de dança, aceitava melhor a presença dos demais.”
Além disso, a pedagoga acredita que, apesar da sociedade já ter percorrido um caminho de conquistas importantes, como a própria LBI, é preciso continuar apostando na inclusão dessas pessoas. “Ter uma criança com deficiência no grupo faz com que todos aprendam. Enquanto ela poderá ter uma vida social e escolar ao fazer parte do grupo, os outros aprendem a compartilhar, a entender, a ser solidário e a perceber que todos nós somos diferentes em muitos aspectos. Dessa forma, as crianças acabam ensinando os próprios pais, pois muitas vezes o preconceito vem dos adultos. Também mostra que a criança com deficiência é capaz de fazer muitas coisas, mas em um tempo diferente.”
Fonte: Aliança pela Infância