sexta-feira, 14 de junho de 2019

Maior risco de autismo em crianças hiperexpostas a mídias audiovisuais

Veja as considerações do médico acerca do maior risco de autismo em crianças hiperexpostas a mídias audiovisuais


Tatiana Takeda para opopular.com.br

Foto: Shutterstock

No mês de abril, a Ludovica reuniu grandes prossionais atuantes na área do autismo. Entre eles, contamos com a presença do neurologista infantil e siologista, doutor Helio van der Linden Júnior. Na ocasião, o especialista contribuiu muito para a discussão sobre o tema mais discutido do evento: a hiperexposição de crianças com autismo aos celulares e tablets. Cientes de que esse assunto merece atenção, convidamos o doutor Helio para dispor sobre uma “teoria perturbadora” e que, em conformidade com o especialista em neurologia infantil, embora careça de comprovação, é algo a ser observado, estudado e refletido.

Veja a seguir as considerações do médico acerca do maior risco de autismo em crianças hiperexpostas a mídias audiovisuais:

Nos dias atuais é simplesmente impossível viver sem o apoio da tecnologia. Computadores de última geração, tablets, smartphones, internet disponibilizada praticamente em toda e qualquer esquina e no telefone celular tornam o mundo cada vez mais digitalizado e hiperconectado. No entanto, todo esse fácil acesso e o uso indiscriminado da tecnologia tem trazido vários problemas. O uso excessivo e precoce de dispositivos audiovisuais por crianças tem sido mais recentemente pesquisado, com vários estudos demonstrando uma maior associação com o transtorno de ansiedade, problemas de autorregulação, déficit de atenção, distúrbio do sono, além de problemas físicos, como a obesidade infantil.

Entretanto, poucos estudos até agora focaram especificamente na associação da hiperexposição audiovisual precoce e o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Essa possibilidade de associação até tem sido discutida de maneira informal entre especialistas que trabalham com TEA, mas pouco se fala abertamente sobre o tema. Em 2015, os pesquisadores Karen Heffler e Leonard Oestreicher publicaram no periódico Hipóteses Médicas uma nova teoria. Segundo os autores, uma grande parcela de casos de TEA é decorrente de uma exposição precoce e intensa das crianças menores de dois anos às mídias audiovisuais. Essa exposição levaria a uma hiperestimulação de vias cerebrais relacionadas ao processamento de informações audiovisuais não sociais.

A hiperestimulação, mantida ao longo do tempo, levaria a uma falha ou inibição do desenvolvimento das redes neurais relacionadas ao chamado cérebro social. Para os autores, a criança pequena, o lactente, não consegue discriminar a relevância social da mídia audiovisual e se sente naturalmente atraída pelas telas brilhantes e ricas em estimulação visual. Dessa maneira, acaba perdendo o interesse por atividades reais, no concreto. Diante da “concorrência” da tela brilhante, chamativa e interativa, que gera respostas rápidas a um simples toque ou que bombardeia o cérebro com milhares de informações sensoriais em poucos segundos, a criança fica cada vez mais fascinada e envolvida nessas atividades de reforço imediato, com um custo baixo para obtenção de resposta.

É como se fosse uma “droga”, em que a criança obtém um reforço, uma satisfação, sem que haja um mínimo de esforço, um engajamento ou uma atividade motora mais elaborada. Ante tanta atividade prazerosa instantânea e imediata determinada pelas mídias audiovisuais, o cérebro fica cada vez mais “especializado” em processar os estímulos originados por essa via. A teoria de um desenvolvimento exagerado de vias neurais relacionada a informações sensoriais visuais e auditivas é reforçada pelo fato de que muitas pessoas com TEA apresentam uma sensibilidade exagerada ou problemas de modulação de determinados sons, bem como têm facilidade em processar informações pela via visual. Alguns até podem desenvolver habilidades extraordinárias, como ouvido absoluto ou memória fotográfica.

O desenvolvimento típico na infância decorre de experiências e interações sociais com pessoas, com objetos, com sensações internas e externas. Desde bebê, quando uma criança se acalma ao ouvir a voz da mãe, quando emite algum som ou sorri, provoca também uma reação na pessoa à frente. Esse processo de determinar uma reação do outro é a base do desenvolvimento social, que vai se especializando em relações mais complexas. A criança necessita compartilhar e dividir a experiência de aprendizado com o outro, provocando reações de mudança de comportamento e vice-versa. Estudos demonstram que crianças de três meses são naturalmente atraídas pela luminosidade e movimentação da tela, em detrimento ao interesse pelas faces.

A ausência de reciprocidade social das mídias audiovisuais, como um contato olho a olho, um sorriso frente a um olhar ou a procura pela fixação ocular do outro, não estimulam um elemento fundamental para o desenvolvimento social, a chamada atenção compartilhada. Trata-se da capacidade de chamar a atenção do outro para si e levar o olhar e atenção desse para outra direção.

Essa teoria nos faz ainda pensar do ponto de vista epidemiológico. A prevalência do TEA no mundo vem aumentando progressivamente a partir da década de 1970. Curiosamente, essa época marcou a ampliação do acesso da televisão nos lares domésticos. Atualmente computadores, tablets e celulares passaram a ser parte do cotidiano na vida das famílias, influenciando, de maneira considerável, os hábitos e comportamentos das pessoas. Diante da falta de tempo e das atribulações do dia a dia, as famílias recorrem cada vez mais às chamadas “babás eletrônicas” e deixam de realizar atividades ao ar livre ou em ambientes naturais. É muito comum até as pessoas acharem verdadeiramente que estão estimulando o desenvolvimento dos filhos colocando-os para assistir TV ou brincar no celular ou tablet.

Apesar do aumento do acesso a informação, ampliação dos critérios diagnósticos, melhora na qualidade da assistência à saúde, é pouco provável que esses fatores sejam os únicos responsáveis pelo expressivo aumento da prevalência do TEA, cujos dados atuais do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos é de um para cada 59 pessoas. Evidentemente, essa teoria não tem a pretensão de explicar que todos os casos de TEA são decorrentes da hiperexposição audiovisual precoce. Como se bem sabe, o TEA é uma colcha de retalhos, com uma série de etiologias genéticas bem conhecidas. Provavelmente as causas do que se chama autismo secundário, ou seja, o autismo causado por uma alteração do DNA, continuam a ter um papel importante nesse cenário e é possível a identificação destas alterações, através de exames.

No entanto, na maioria dos casos não se encontra um “defeito” genético, configurando o chamado autismo idiopático. Provavelmente esses casos são os que podem sofrer mais a influência ambiental da hiperexposição audiovisual. É lógico que essa nova teoria traz um impacto gigantesco na sociedade atual. Admitir e confirmar esse risco deverá trazer uma mudança de hábitos de maneira radical, com a proibição de dispositivos audiovisuais em crianças menores de quatro anos. Atualmente as sociedades brasileira e americana de pediatria já recomendam que se evite a exposição aos dispositivos eletrônicos em crianças até os dois anos de idade. Contudo, essa recomendação é muito pouco difundida e, consequentemente, pouco seguida. Apesar da necessidade de confirmação da teoria, os argumentos e dados epidemiológicos, associados ao conhecimento da fisiologia do desenvolvimento neuropsicomotor típico, permitem colocar essa hipótese como plausível para parte do aumento de casos de TEA no mundo.

Até que essa teoria possa ser comprovada, cabe a recomendação de se evitar ao máximo (e até proibir) que crianças menores de quatro anos de idade sejam expostas a estimulação audiovisual excessiva. Uma medida simples do comportamento, com mudança de atitude e hábitos, privilegiando-se atividades lúdicas no “mundo real”, olho a olho, pode contribuir para um desenvolvimento infantil saudável, não só nos aspectos sociais, mas também físico e emocional.

Fonte:

- Heffler KF, Oestreicher LM. Causation model of autismo: Audiovisual brain specialization in infancy competes with social brain network. Med Hypotheses (2015)

- Media usa by children younger than 2 years. American Academy of Pediatrics. doi: 10.1542/peds.2011-1753

- Radesky J, Christakis D. Increased screen time: implications for early childhood development and behavior. Pediatr Clin N Am 63 (2016): 827-839


*Helio van der Linden Júnior é neurologista infantil e fisiologista e atua no Instituto Neurológico de Goiânia e no Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (CRER).

*Tatiana Takeda é advogada, membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/GO, em que coordena a Subcomissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Autista, Vice-Presidente da Comissão de Inclusão Social e Defesa da Pessoa com Deficiência do IBDFAM/GO, professora do curso de Direito da PUC Goiás, servidora pública, mestre e especialista em Direito, pós-graduada em Ensino Estruturado para Autistas e autora da coleção de Ebooks “Viva a Diferença – O que você precisa saber sobre Autismo”, disponível para download gratuito no site www.ludovica.com.br.

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