Um dos receios é que, com novo decreto, colégios regulares passem a negar matrícula sob argumento de maior adequação das especializadas
Ana Paula Blower, especial para O GLOBO
Denise Fonseca e o filho João Pedro Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
RIO — No último dia 30, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto instituindo a nova Política Nacional de Educação Especial, que trouxe a possibilidade da volta das “escolas especializadas”, separando alunos com e sem deficiência. A mudança preocupa famílias de crianças com deficiência, que criticam o que apontam ser uma brecha perigosa para a segregação. Especialistas, por sua vez, classificam a medida como um retrocesso histórico no momento em que os estudantes já são incluídos em salas de aula regulares.
Segundo dados do Censo Escolar de 2019, há cerca de 1,2 milhão de alunos com deficiência no país, sendo 92% deles matriculados em classes comuns.
A nova medida determina que as escolas regulares sejam as prioritárias, mas passa a incluir as especiais como opção e destino de recursos públicos.
Decreto abre precedentes
Um dos temores de pais e especialistas é o da negação de matrícula nas regulares sob o argumento de que escolas especiais atenderiam melhor um aluno com deficiência.
Mãe de uma menina com autismo, a assistente social Livia Dias não esquece das vezes que ouviu um “não” de uma escola ao tentar matricular a filha, Nicole, de 7 anos.
— Uma vez, perguntei se não tinha vaga na escola ou se era só para a minha filha. E eles responderam que não tinha para ela mesmo. Saí de lá chorando muito — lembra a mãe de Nicole. — Levei anos para conseguir uma escola que a aceitasse. Este ano ela está em uma regular onde consegue aprender, pois ela não tem comprometimento de aprendizagem. Seu maior desafio é a socialização, que já melhorou muito. E é a escola regular que vai trabalhar isso.
O mesmo não aconteceu com a professora de Educação Física Andrea Apolonia, mãe de uma jovem de 20 anos que tem uma síndrome rara e com comprometimento intelectual. Após penar para encontrar uma escola com infraestrutura que aceitasse sua filha, ela matriculou a jovem em uma escola especial e se diz, hoje, uma “defensora da escola inclusiva”.
— Tive a vivência de uma época anterior à Lei Brasileira de Inclusão, de 2015. Eu implorava por uma vaga. Nunca desisti de uma escola regular, cheguei a contratar um mediador por contra própria, mas a escola dizia que não era suficiente. Aos 14 anos, a matriculei em uma escola especial. Hoje a Rafa está bem, faz aula de teatro, música, mas não serei feliz se voltarmos atrás — diz a professora, uma das organizadoras do grupo Juntos, de famílias de pessoas com deficiência.
Rodrigo Mendes, fundador e superintendente do Instituto que leva seu nome e advoga pelo acesso à educação de qualidade por pessoas com deficiência, pondera que as escolas especiais raramente têm bons desempenhos educacionais ou incorporam os currículos nacionais. O ideal, argumenta, seria investir nas escolas regulares para que estas possam cada vez mais oferecer uma educação inclusiva de qualidade, com professores capacitados, materiais didáticos adaptados e acessibilidade.
— O texto (do decreto) dá a entender para as famílias que é interessante considerar a escola especial, e não a regular. Além de gerar dúvidas, abre precedentes para as escolas regulares argumentarem que não podem atender aquele aluno — afirma Mendes. — Temos que progredir muito ainda na educação inclusiva. E enquanto se tirar recursos para manter um sistema paralelo, o das escolas especiais, esse público será mal atendido.
Ganho de empatia
Segundo especialistas, estudos apontam que quando há convivência entre pessoas com deficiência e sem aumenta a aprendizagem de competências cognitivas e socioemocionais. Para crianças e jovens sem deficiência, o aprendizado estaria no ganho de empatia, respeito às diferenças e novas formas de conviver e de pensar.
A psicóloga Silvia Barbosa é mãe de Carla Vitória, de 9 anos, sem deficiência, e defende a inclusão. Para ela, é importante que sua filha conviva com “crianças de todas as formas e jeitos”.
— Todos aprendem mais do que conteúdos escolares nessa relação — diz. — A educação inclui pessoas, necessidades, possibilidades, descobertas e uma luta diária e sem fim. Não tem como voltar ao que era antes, onde os indivíduos com deficiências ou algum tipo de transtornos eram segregados. As escolas não podem rejeitar alunos por achar que eles atrapalham o resultado.
Para Rodrigo Mendes, as gerações que passaram pelas escolas especiais são as que não conquistaram autonomia e dependem das famílias, algo que “é muito perverso”.
— A hipótese é que esses ambientes (de escolas especiais) limitam profundamente a interação com o resto da sociedade, e isso é imprescindível para que se tenha chance de alcançar o melhor de seu potencial.
Mãe de João Pedro, de 16 anos, a relações públicas Denise Fonseca, 48, conta que jamais havia dividido um banco escolar com alguém que tivesse alguma deficiência.
— Só fui me deparar com essa questão quando o João nasceu. Se tivéssemos incluído pessoas com deficiência nas escolas, toda a minha geração teria crescido com essa consciência — diz ela, que também é fundadora do grupo Mundo Azul, de familiares de jovens e crianças com autismo. — O João sempre foi muito bem aceito na escola, onde está matriculado desde os 3 anos. Hoje, aos 16 e no segundo ano do ensino médio, tem um relacionamento maravilhoso com a turma. No nono ano, inclusive, foi um dos oradores da turma. Ele tem as limitações dele, como todos nós temos, independentemente do autismo. Mas também tem muitas virtudes.
Para Fonseca, os movimentos das pessoas com deficiência levaram muito tempo para conseguir os avanços conquistados hoje, que impactam um grande número de famílias:
— É um contingente grande de alunos com deficiência, e essas pessoas serão, posteriormente, inseridas no mercado de trabalho. Não vamos viver para sempre, precisamos prepará-los para uma vida autônoma e independente.
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